
Por M. Correia Fernandes
A Páscoa deste ano parece ter-nos libertado da pressão mediática sobre a questão dos abusos. Parece que o silêncio prudente substituiu a avalanche noticiosa dos últimos meses, numa louvável superação do ruído mediático envolvente.
As celebrações decorreram, entre nós e em todo o país, com o habitual sentido pascal, desde as liturgias da Semana Santa até às liturgias do Dia de Páscoa, em que se reviveram tradições pascais que associam o essencial elemento litúrgico a muitas recriações populares do sentido humanizado do mistério.
Pode isto tornar-se um sinal de passar além do drama para edificação da paz e do equilíbrio humano e espiritual, que é uma das dimensões mais fortes e humanizadoras da Páscoa e das suas festas. É pelas exigências da justiça, pela purificação da razão e por um forte sentido ético que se realiza também a dimensão salvífica da Pascoa cristã.
Recorrendo à encíclica fundamental e fundadora de Bento XVI, Deus Caritas est (de dezembro de 2005), parece que a Páscoa, em relação aos princípios essenciais da Fé, propõe a reflexão essencial: “A doutrina social da Igreja discorre a partir da razão e do direito natural, isto é, a partir daquilo que é conforme à natureza de todo o ser humano. E sabe que não é tarefa da Igreja fazer ela própria valer politicamente esta doutrina: quer servir a formação da consciência na política e ajudar a crescer a percepção das verdadeiras exigências da justiça e, simultaneamente, a disponibilidade para agir com base nas mesmas, ainda que tal colidisse com situações de interesse pessoal. Isto significa que a construção de um ordenamento social e estatal justo, pelo qual seja dado a cada um o que lhe compete, é um dever fundamental que deve enfrentar de novo cada geração. Tratando-se de uma tarefa política, não pode ser encargo imediato da Igreja. Mas, como ao mesmo tempo é uma tarefa humana primária, a Igreja tem o dever de oferecer, por meio da purificação da razão e através da formação ética, a sua contribuição específica para que as exigências da justiça se tornem compreensíveis e politicamente realizáveis” (n. 28).
Ora será esta atitude que parece que as comunidades cristãs adotaram no contexto desta crise: que por meio da purificação da razão e pela busca da formação ética ajude a conduzir a sociedade à compreensão de que os erros e os males se devem tornar motivo de reflexão e criadores da sua superação. Tanto o ouvimos e dizemos e tão pouco e conseguimos captar: O Salvador não veio para condenar mas para salvar, e a frase dita a tantos no Evangelho, pode também ser dita à sociedade de hoje: vai e não voltes a pecar. Há um trabalho essencial a promover na sociedade nesse sentido.
Na sua homilia pascal, o papa Francisco acentuou a mesma ideia: “Páscoa significa ‘passagem’, porque, em Jesus, se realizou a passagem decisiva da humanidade, ou seja, a passagem da morte à vida, do pecado à graça, do medo à confiança, da desolação à comunhão”.
É esta passagem, a da desolação à comunhão, que deve constituir um apelo tanto para a Igreja como para a sociedade.
É também pascal a proposta da Conferência Episcopal Portuguesa ao afirmar: “Reafirmamos a nossa disponibilidade para acolher e escutar as vítimas que o desejarem e mantemos o firme compromisso de assumir as nossas responsabilidades e disponibilizar às vítimas todas as ajudas necessárias para o seu acompanhamento espiritual, psicológico e psiquiátrico, e outras formas de reparação do crime cometido”.
Podemos igualmente ir buscar mensagens dos bispos portugueses que evidenciam esta dimensão, propondo os caminhos da reconciliação.
O Bispo do Porto fez oportunamente notar que Deus “transcende sempre os nossos conceitos e certezas”, “ultrapassa as capacidades do nosso olhar a verdade que a nossa mente não consegue traduzir em fórmulas”. E na homilia pascal propôs o conceito do “silêncio de Deus” que sentiram os místicos, para apelar à superação dos rancores, dos medos, das dúvidas ou dos fracassos. E o arcebispo de Braga propõe “alegria contagiante, escuta acolhedora, portas abertas, mãe que busca os seus filhos”.
Ultrapassar as incapacidades do nosso olhar (lembramos a frase pessoana: “só vemos até onde chega o nosso olhar”) é também superar as incapacidades dos nossos julgamentos, que todos tendem a absolutizar. Este “buscar dos filhos” não é apenas da mãe, é a atitude de Deus em relação a toda a vida humana.