O Cinema visto pela Teologia (63): “Viver”

Uma leitura do filme “Viver*

​​Por Alexandre Freire Duarte

“Viver” é daqueles títulos de filmes tão singelos, desprovidos de explicação e facilmente esquecíveis que, como a vida, pode passar desapercebido. Mas a obra trata-se de um drama belo, simples, sincero, gentil e sentido ao qual a direção rigorosa (e quase sincrónica) e uma ímpar e triste beleza (delineada pelas tonalidade e luzes sumptuosas) lhe dá uma força meditativa que o seu tom melancólico poderia deixar escapar.

Não direi que se trata de um filme brilhante (sobretudo quando entra em “piloto-automático” e deixa alguns “fios soltos” espalhados), mas é bem articulado e envolve-nos com consistência na sua história. Uma que, partindo do modesto para almejar verdades maiores, privilegia a edificação das figuras, tendo como cenário a recriação, evocativa e genial, da Inglaterra pós-II Guerra Mundial. Entre as personagens, e sem descurar a enérgica de Wood, a desempenhada por Nighy sobressai quase como Atlas a carregar os céus às costas: é comedido, afoito e cheio de uma persistente complexidade internalizada que, cruzando a dor e o arrependimento, é palpável, direta e espontânea.

É. A nossa vida, mesmo de cristãos, é, muitas vezes, como o nome desta obra: arrisca-se a passar ao lado da nossa existência. Existimos, mas não vivemos; vivemos, mas apenas em modo de sobrevivência, descurando que quem não ama está morto (cf. 1Jo. 3,14). Somos, não mortos-vivos, mas vivos-mortos, empurrados por mecanismos que sugam o sentido, que só o amor pode dar, à nossa viva. E o amor a que me refiro, tal como se vê neste filme, não é apenas para as noites com estrelas cadentes: é igualmente para fazermos tudo sabendo que isso tem implicações que podem ser genuinamente benéficas para quem nos cruzamos, ou poderá, um dia, beneficiar do suor do nosso rosto.

Se virmos o passado e quisermos rasgar o desconhecido do futuro num momento em que, por este ou aquele motivo, a morte já não sai da nossa mente, poderá haver a tendência de querer vencer essa barreira biológica pelo sangue, a fama e (se formos vaidosos) o imaginar as pessoas que estarão no nosso funeral. Mas sabemos bem que não é esse o caminho, antes vivermos com sabedoria amorosa o que nos for dado a viver, realizando, não o que apetece ao nosso “ego”, mas o que Deus quer que sejamos. Não pessoas prepotentes, ameaçadoras e humilhadoras dos demais (por vezes sob a máscara da santidade e do prestígio dados pelas fotos que não mostram o nosso coração), mas pessoas vivas na Vida para que a Vida seja a vida que de nós escorre para a dos demais.

A vida, mesmo quando sabemos que a morte vai entrando elusiva e diariamente nessa vida (também para nos despertar para o momento em que voaremos na morte até ao regaço do Pai), não devia ser sobrevivida, mas vivida repleta de assombro e alegria. Uma alegria que, mesmo no Seu estado de esvaziamento, deve ter sido das realidades que mais custou a Jesus não manifestar mais explicitamente. Um alegria que, tal como neste sínodo que estamos a viver, leve, não a uma outra vida/Igreja, mas uma vida/Igreja outra: melhor, mais santa, mais verdadeira, mais bela, mais amorosa, mais humilde.

Uma vida em que não seremos atirados de rochedo em rochedo, pois encararemos tudo com amor e, assim, viveremos numa transformação do bom para o melhor em Deus.

(* Reino Unido, 2022; dirigido por Oliver Hermanus; com Bill Nighy, Aimee Lou Wood, Alex Sharp e Tom Burke)