
Por Jorge Teixeira da Cunha
Que me desculpem os sacerdotes que pertencem a grupos de espiritualidade intensa, grande sentido de grupo, muito acompanhamento, estabilidade controlado por muitos apoios. Nesta semana de Páscoa, porém, é devida uma palavra aos padres ditos seculares, pois eles, mais que os outros, estão no centro de um turbilhão. A “crise dos abusos” é uma curva da história cujas consequências são ainda imprevisíveis. A memória da teofania do Cenáculo vai ser mais intensamente vivida este ano, para que não percamos o pé perante aquilo que verdadeiramente importa. Os doze apóstolos da última ceia representam todo o povo de Deus que é criado pela caridade de Cristo vivida até ao fim. Mas, no centro do povo está a figura dos ministros que estruturam a comunidade e vivem a identificação com Cristo de um modo muito particular.
Os padres seculares existiram sempre, embora sob formas diversas e justificados com diferentes ideias teológicas. Parece justo olhá-los pelo aspecto de originalidade do próprio sacerdócio de Cristo. De facto, o sacerdócio segundo o Antigo Testamento e segundo a história das religiões foi abolido por Cristo. Doravante, não há sacerdotes nem sacrifícios como os havia no universo sacral antigo. O que há é a caridade de Jesus, cuja vida se afirma, pacificamente, contra todos os seus inimigos, entre os quais se encontra a própria ideia de sacrifício, bem como todas as estruturas de pecado que se interpõem nas relações humanas e na escuta de Deus que sempre se faz ouvir aos ouvidos humanos. Esta é a realidade na sua forma mais originária, a filiação divina do ser humano que se trata de assinalar, de celebrar, de reconstruir diante de todos os fracassos que a impedem e a complicam. Este é o “sacerdócio” a que se trata de regressar continuamente, qualquer que seja a figura sociológica do sacerdote. O clérigo secular, como o temos hoje, tem grandes virtualidades neste esforço de identificação com Cristo, cuja definição é vida divinamente filial e fraterna mais do que tudo o resto.
O padre secular só tem sentido nesta proximidade de Cristo e na proximidade do povo. Foi este aspecto de proximidade do povo que sempre caracterizou o padre secular. Enviado sem grandes suportes para as comunidades, tem vivido a vida comum, em tudo igual ao comum das pessoas, excepto pela sua vida celibatária. Por vezes, tão pobre como o seu povo, tão isolado como as povoações abandonadas, é o último reduto de humanidade nesses lugares remotos. Acompanha os acontecimentos familiares, o nascimento, o casamento, a morte. Celebra os ritos de passagem, com mais ou menos eloquência, diz a palavra que salva e desata o nó górdio de tantas vidas, pela palavra da absolvição. É certo que o processo de desenvolvimento de urbanização veio transformar este pequeno mundo. Mas o essencial permanece: a proximidade do mistério da vida e a proximidade do povo.
Mesmo que o modelo tridentino esteja a chegar ao termo, a secularidade dos ministros de Cristo continua a ser a característica do seu perfil. Se é certo que alguns destes presbíteros foram apanhados na crise dos abusos, e isso é abominável, isso não quer dizer que o mérito de tantas histórias de heroísmo invisível, de tanta virtude desconhecida fica anulado. Num tempo como o nosso, caracterizado pela usura da palavra que perdeu a poesia, de vida comum massificada, de comunicação manipulada, de ruído diabólico que impede a escuta do divino, de desprezo pela criação divina, a figura do ministro de Cristo tem mais actualidade que nunca. Na sua fragilidade mais do que na sua opulência, ele pode ser a transparência do seu divino mestre que morreu expulso da cidade e, nesse abandono, fundou a vida comum e deu à palavra humana a virtualidade da justiça e a promessa da paz.