O Cinema visto pela Teologia (62): “Tar”

Uma leitura do filme “Tár*

Por Alexandre Freire Duarte

“Tár” é uma obra inteligente, questionadora e intrigante que levará a que, no fim de um crescendo quase insuportável, nos perguntemos: “o que é que acabei de ver?” . Apresentando-se falsamente como um filme sobre alguém real, mas sendo uma genuína análise (introspetivamente psicológica e intimamente espiritual) da índole desse “alguém”, este filme obriga a que nos deixemos submergir nele sem querermos (vi)ver segundo as nossas expectativas. E isto para que toda a força do seu poderoso, nuançado e às vezes enigmático drama nos vicie, cative e emocione e, naquele fim, nos faça sentir perdidos.

Esta obra é Cate Blanchett. Não há momento, postura, gesto ou palavra alguma que não a mostre (de modo intrigante e fascinante) excecional e fenomenal num papel cheio de energia, carnalidade e fraquezas, em que a carapaça inicial vai quebrando mais e mais sob a tensão a ela subjacente. Para esta realidade ser possível, a banda-sonora de intensidade bem medida, a direção persuasiva e encantadora e, por fim, as personagens secundárias que complementam a intensidade de Tár / Blanchett estão, felizmente, perfeitamente ajustadas.

À luz da teologia cristã, “Tár” escaqueira a verdade de que não é o poder, a riqueza e ou genialidade que nos destroem, mas as nossas escolhas espirituais erradas, nomeadamente no uso de tais elementos. Tár está, graças a máscaras sociais e profissionais, em sintonia com tudo, menos com a sua verdade e, assim, com Deus. Tudo nela é grandeza, mas esta soa claramente a algo inumano, especialmente por ela manter tudo à distância de um olhar ou de uma palavra e, mais do que isso, devido a tudo e todos (exceto a filha) não serem senão utensílios egoisticamente usados para ela erigir essa grandeza pura e uma fachada sem poros.

Esta obra, deste modo e também com umas “bicadas” à “cultura do cancelamento” e ao movimento “Me Too”, coloca-nos ante a nossa coeva humanidade anémica e confusa, cheia de vagas intensões sobre preocupações relevantes, mas cujas soluções desabam por querermos ser os únicos senhores omni-controladores e omni-fabricadores da nossa existência. Acontece que somos pessoas, e, assim, as relações permeáveis são fundamentais para descobrirmos que, sozinhos, acabaremos, fatalmente, tais empreitadas como um móvel do IKEA montado por mim. Graças a Deus que isso pode ser ocasião para percebermos que o resultado de tais esforços não precisa de ser o nosso redentor – e felizmente não é. É-o Jesus.

A vida de Tár é a vida de muitos de nós. Mas nós não temos motivos para cair no desespero. Não carecemos de cair, ainda que de pé, humilhados pelos nossos desejos auto-idólatras ou pelos ídolos de pés de barro que se querem impor a nós (sobretudo o medo de morrer). Poderemos estar sempre seguros por Deus, mesmo que percamos as seguranças terrenas, desde que n’Ele ponhamos a nossa verdade e admitamos, ante Ele e aqueles a quem magoámos, que estamos (não totalmente) feridos pelo desamor. Seres que precisam de um genuíno perdão, enseivado pela seiva do Perdão do Senhor, para que o que fizemos não nos impeça de, futuramente, sermos realmente melhores no amor. Mas isto custa, não custa?

(* EUA, 2022; dirigido por Todd Field; com Cate Blanchett: Nina Hoss; Noémie Merlant e Mark Strong)