
Uma leitura do filme “Os Espíritos de Inisherin” *
Por Alexandre Freire Duarte
“Os Espíritos de Inisherin” é uma impressionante obra cinematográfica a todos – mesmo todos – os níveis. A história é uma delícia nas suas diversas camadas narrativas, em especial na sua análise da génese dos conflitos humanos ante a morte (com a Guerra Civil Irlandesa em eco de fundo); a fotografia, focando-se na beleza natural, é perfeitamente descritiva; as performances de todos os atores é de uma simbiose notável, em especial as do virtuoso e cheio de carisma duo Farrel – que com um simples mudar de posição corporal (e de sobrancelhas) nos transporta para outra realidade totalmente diferente – e Gleeson – misterioso quanto basta para ser enigmático e empático; enfim, a música é um regalo.
Tudo neste filme é de uma enorme, humorosa, sombria e calorosamente serena intimidade – humana e ambiental –, o que apenas faz o nosso coração bater mais forte quando surge o que, exteriormente, rompe essa intimidade. Os trilhos da brilhante trama postos ante nós, entrecortados com diálogos satíricos, são sempre inesperados e cheios de uma genial mistura de exaspero e sensibilidade, de eloquência e daquela loucura de que todos padecemos um pouco. Como não será, um filme assim, uma delícia do princípio até ao seu rasgado fim?
Não sei qual é o tema axial desta obra, mas como teólogo diria que, face a uma religião omnipresente mas omni-impotente como a que nele é retratada, é o de como se poderá sobreviver à morte: pela bondade ou pela celebridade? Todos nós, cristãos, sabemos a resposta a esta questão, mas o nosso egoísmo nunca deixa de nos tentar convencer que, no mundo das pessoas comuns, “dos bondosos não reza a história”. Acedendo a esta alienação, as nossas relações sofrem um abalo que pode ter consequências profundas, mormente a nível de desordem mental, dor espiritual e raiva fatal para o desamor com que se passa a viver.
E sim: esse nosso tal sofrimento (usualmente insensível devido ao calo causado pelo “ego”) pode corromper-nos tanto como o pecado, donde, por favor, não nos esqueçamos disso quando alguém nos “magoa”, ignorando, rejeitando ou violentando (de diversas formas) o nosso mais autêntico “eu”. No fundo ainda acredito que, como mostra este filme, sempre quisemos mais e estar bem com menos (sejam estes “mais” e “menos” de múltiplas naturezas), mas assumimos demasiado depressa que não perderemos os apoios dos nossos amigos verdadeiros – os que, quando nos traem, “espetam a faca” no peito e não nas costas.
Ocorre que isso, muitas vezes, não acontece, e eis-nos a incorrer em tal corrupção, que, por falta de uma relação discípular com Jesus (Deus e irmão), pode conduzir a verazes desolações e decadências morais que, afetando inclusive quem não conhecemos, nos impede de sair do lugar ante certas realidades inamovíveis. Não culpemos os demais pelas nossas ações decorrentes de “panelas de pressão” emocionais fruto do que nos fazem. As nossas decisões, mesmo quando circunstanciadas, são sempre nossas e eleitas por nós, e se se manifestarem fátuas, recordemos sempre – sempre – que no começo de tais “panelas” há sempre mesquinhas questões pessoais próprias, fruto de se optar, não por compromissos (conquanto não violem a nossa consciência crística), mas por absolutos que não Deus.
(* Irlanda, Reino Unido e EUA, 2022; dirigido por Martin McDonagh; com Colin Farrell, Brendan Gleeson, Kerry Condon e Barry Keoghan)