
Por M. Correia Fernandes
O tratamento que na comunicação social tem sido dado à questão dos designados “abusos sexuais” por parte de membros da Igreja, particularmente de sacerdotes, tem-se tornado um vasto campo de acusações, julgamentos, condenações e criminalizações, em que se arvoram em juízes todos aqueles que dispõem dum espaço mediático.
Está clara a condenação dos abusos, por ofensa à dignidade das pessoas, sobretudo das mais débeis, como as crianças. Mas parece-me que as atitudes judicativas, assentes em suposições, muitas vezes sem o necessário fundamento, se tornam em condenatórias sem que tenham sequer sido comprovadas. Contradizem-se assim dois princípios jurídicos: o da presunção de inocência e o do direito à defesa dos arguidos. A própria Comissão Independente foi desnecessariamente pormenorizada em relatos e solícita em avançar números, mas não tão clara na sua comprovação.
Por outro lado, a voracidade com que tais casos, certos ou incertos, são pasto da comunicação social torna-se também evidenciadora da intencionalidade que lhes subjaz.
Todos lamentamos a veracidade da existência de tais abusos e os responsáveis da Igreja têm afirmado o seu reconhecimento, o pedido de desculpas aos ofendidos e a responsabilização dos autores. Porém a sociedade deveria ser mais honesta no acolhimento tanto das vítimas como dos responsáveis.
Na Divina Comédia, a visão de Dante, aos percorrer o Círculo sexto do Purgatório, no canto 25, acentua que muitos nas chamas cantavam Summae Deus clementiae (louvor da “Suprema clemência de Deus”, porque “por tal meio (o da purificação das chamas) convém que a chaga do pecado, finalmente, se cicatrize”. Ora é este propósito e este o processo que pensamos deve ser promovido e fundamentado, em vez do aprofundamento das chagas.
No capítulo IV do Paraíso, o poeta lembra que “inteira violência há só, quando quem a sofre não cede nada ao que o violenta”. Quem sofre esta violência são tanto as vítimas pessoais da agressão, como toda a Igreja e toda a sociedade humana em que se insere. Importa que uma e outras, as vítimas pessoais, a vítima eclesial e a vítima social, tenham a capacidade de engendrar a conversão e o perdão para que, também no dizer de Dante, “uma justa vingança não seja depois punida por um justo tribunal” (Paraíso, canto VII), já que a vingança também merece punição.
Todo este entendimento nos deve nascer da leitura e da proposta de que rezam os evangelhos, repetidamente afirmados nestes dias: “Sede misericordiosos, como o vosso Pai é misericordioso. Não julgueis e não sereis julgados. Não condeneis e não sereis condenados. Perdoai e sereis perdoados… A medida que usardes com os outros será usada também convosco”.
A palavra do épico, nascida de todo o pensamento da grande Idade Média, traduz à sua maneira a palavra bíblica: “Com o critério com que julgardes, sereis julgados; e com a medida que usardes para medir a outros, igualmente medirão a vós”. E é também significativa, e devia ser assumida pelos acusadores, a passagem do evangelho de João, no capítulo 8: “Aquele que dentre vós está sem pecado atire a primeira pedra”. Perante a escrita na terra, os acusadores “saíram um a um, a começar pelos mais velhos”. Jesus disse-lhe: “Mulher, onde estão aqueles teus acusadores? Ninguém te condenou? E ela disse: Ninguém, Senhor. E disse-lhe Jesus: Também eu não te condeno; vai e não voltes a pecar”.
Hoje ninguém se afasta e todos condenam. Apenas se esquece o conselho essencial: “Não voltes a pecar”.
Esta proposta cristã para a convivência humana está igualmente traduzida nas leis e normas justas que regem a paz social e a dignidade humana: a cominação de uma pena devida por qualquer transgressão não deve ser tomada como vingança, mas como caminho de recuperação e busca de novos comportamentos. Porém, a comunicação social procura, mais que o propósito louvável de defender ou apoiar as vítimas, o de condenar genericamente os culpados, mesmo sem ter o cuidado de devidamente fundamentar a acusação.