Discernimento necessário

Por Secretariado Diocesano da Liturgia

Na Bula O Rosto da Misericórdia o Papa Francisco falava de um retorno ao Sacramento da Reconciliação: «Há muitas pessoas – e, em grande número, jovens – que estão a aproximar-se do sacramento da Reconciliação e que frequentemente, nesta experiência, reencontram o caminho para voltar ao Senhor, viver um momento de intensa oração e redescobrir o sentido da sua vida. Com convicção, ponhamos novamente no centro o sacramento da Reconciliação, porque permite tocar sensivelmente a grandeza da misericórdia. Será, para cada penitente, fonte de verdadeira paz interior» (Francisco, Bula Misericordiae Vultus, 17).

Confrontando-nos com a realidade que experimentamos diariamente, teremos de reconhecer que esse retorno não é ainda uma realidade palpável entre nós. Isto sem ignorar os  inúmeros milagres que a misericórdia divina incessantemente realiza através deste Sacramento mesmo quando negligenciado pela generalidade dos fiéis quer na condição de penitentes quer na de ministros. A verdade, porém, é que a situação de crise persiste e não se pode dizer com objetividade que haja sinais manifestos de «retoma» desta prática sacramental que chegou a caracterizar a prática eclesial na época pós-tridentina.

A este propósito, recordamos a análise de um autor eminente, em obra publicamente elogiada pelo Papa Francisco (Walter Kasper, A Misericórdia, Cascais, Lucerna, 2015). O quadro aí apresentado corresponde melhor à experiência que vivemos: «Hoje, não podemos deixar de falar de uma grave crise deste sacramento. Na maioria das paróquias perdeu-se, em grande medida, a sua prática; e muitos cristãos participam na Eucaristia sem cuidar da prática sacramental da Penitência, entre os quais se contam muitos dos que participam regularmente na celebração dominical. Esta situação é uma das feridas mais profundas da Igreja atual e tem de ser motivo para uma interpelação séria da nossa consciência pessoal e pastoral» (Ibid, 200).

Walter Kasper referia múltiplas razões para esta crise: «Muitos já não vivem o sacramento da Penitência como um presente pascal nem como uma libertação; pelo contrário, ele é frequentemente entendido como uma obrigação, um meio de controlo, como a intenção de orientar as consciências e tutelar as pessoas. … Enquanto que as gerações mais velhas têm reparos a fazer ao sacramento da Penitência por causa das más experiências vividas, numerosos cristãos mais jovens têm hoje reparos a fazer a este sacramento porque nunca o experimentaram. A isto acresce uma ilusão de inocência verdadeiramente patológica em muitos dos nossos contemporâneos. A culpa é sempre dos outros ou do sistema. Aqui funciona um gigantesco mecanismo de absolvição, que em última análise questiona a responsabilidade pessoal e, com isso, a dignidade humana» (Ibid., 201). Para sermos inteiramente objetivos devemos registar que, perante um panorama tão sombrio, o autor vislumbrava sinais de mudança para melhor em lugares de peregrinação e centros espirituais e nas jornadas mundiais da juventude (Ibid.).

Nem sempre a abundância de sintomas facilita a tarefa do diagnóstico e a consequente prescrição da terapia mais adequada. De facto, o mesmo efeito pode ser produzido por causas diversas, de forma independente ou associada… Também no nosso caso se impõe um exercício de discernimento:

– Trata-se da crise de uma forma celebrativa, de um modelo pastoral datado e mutável?

– Trata-se de uma crise do próprio sacramento da Penitência que não terá suficiente razão de ser?

– Trata-se de uma crise da Igreja­‑Sacramento, cuja papel no processo da reconciliação está em causa?

– Trata-se de um reflexo da crise geral a que conduziu o projeto humanista da modernidade, de uma «crise de fé», pura e simplesmente?

Talvez haja de tudo um pouco. O discernimento é para ser feito, se possível segundo o método da sinodalidade, pondo-se todos à escuta do Espírito e uns dos outros, com Pedro e guiados por Pedro. O Pedro que hoje se chama Francisco e que no passado dia 17 de março esteve a confessar na Paróquia de Santa Maria das Graças, nas «vinte e quatro horas para o Senhor», não sem antes, na homilia, interpelar penitentes e ministros.