Um sacramento em crise

Por Secretariado Diocesano da Liturgia

Quando se celebrou o II Concílio do Vaticano, a crise do modelo tridentino da celebração do Sacramento da Penitência era um facto reconhecido. Sim: mesmo onde havia abundância de ministros e as filas para o confessionário eram longas, particularmente na Quaresma, tempo justamente favorito para a «desobriga». À época, a obrigatoriedade da confissão anual, que remonta ao IV Concílio de Latrão (1215), ainda tinha muita força na mentalidade dos fiéis. Aliás permanece na ordem canónica (CDC cân. 989). Mas, verdadeiramente, em tantas confissões rotineiras, não era fácil discernir quando havia verdadeiros penitentes com conversão de coração e vida. A absolvição era dada no pressuposto de que o pecador não deixaria de satisfazer posteriormente pelos pecados confessados mas tal «satisfação» limitava-se (e limita-se), o mais das vezes, à realização de atos de piedade, sem reparação dos danos nem terapia das enfermidades morais e espirituais. E, por isso, sem genuína reconciliação.

Teólogos e historiadores dos sacramentos e do dogma falavam das «verdades esquecidas» em relação ao quarto Sacramento e alguém dizia, com sentido de humor, que eram «esquecimentos muito bem lembrados». Entre esses esquecimentos estava a dimensão eclesial do Sacramento da Penitência e o seu caráter processual a implicar itinerários litúrgicos e existenciais, tal como era de regra com a Iniciação cristã. Para além de uma moral que reduzia os inimigos da alma a apenas um – a carne – e que, do decálogo, quase só estava atenta aos pecados contra o sexto mandamento, a averiguar escrupulosamente em espécie e número, em autênticos inquéritos em que o «juiz», assumindo também o papel de «procurador», se sentia obrigado a perguntar, não raramente com minúcia morbosa (e, quiçá, imprudente), correndo até o risco de ensinar a pecar os mais inocentes.

A melhor teologia não deixava de ensinar que eram indispensáveis os «atos do penitente» que, neste humaníssimo sacramento, tomavam o lugar da «matéria»: contrição (alguns contentavam-se com a «atrição», um arrependimento movido apenas pelo medo do castigo), a confissão (após diligente exame de consciência) e a satisfação (realização das obras de penitência). Mas destes atos e processos humanos e existenciais, a confissão passou a prevalecer e quase a absorver os outros dois, enquanto expressão verbal do arrependimento e, pela humilhação e vergonha que supõe, parte significativa da própria penitência. Para que o sacramento estivesse completo, aos atos do penitente teria de unir-se a intervenção ministerial da Igreja pelo exercício do «poder das chaves» – de ligar e desligar, absolver ou reter os pecados – confiado por Cristo aos Apóstolos e hoje exercido pelos Bispos e presbíteros com faculdade para tal: é a «forma», segundo o esquema hilemorfista da teologia sacramental. Esta intervenção do ministro era vista, de forma quase exclusiva, segundo o modelo judicial, com subalternização ou esquecimento de outros modelos bíblicos que devem completar o seu perfil humano e ministerial: pai, médico, pastor… E, assim, o sacramento veio a concentrar-se numa «administração» pontual: no mesmo encontro, com a máxima discrição e absoluta reserva, o pecador penitente confessava os seus pecados e o ministro dava-lhe a absolvição, mediante a imposição de uma «penitência» a cumprir depois, habitualmente a recitação de orações e outros atos de piedade. Acrescentemos a tudo isto a generalização recomendada da «confissão de devoção» e a sobreposição do papel do ministro do Sacramento com o de diretor espiritual.

Dir-se-á que este modelo produziu inumeráveis santos e continua a ter grandes virtualidades. É inquestionável. Mas diga-se, em abono da verdade, que também houve gigantes da santidade cristã que nunca «se confessaram» (mas nem por isso deixaram de viver e celebrar a Penitência). E reconheça-se que esta redução do Sacramento da Penitência explica em boa parte a situação atual em que inúmeros fiéis deixaram de encontrar na Igreja a celebração laboriosa mas feliz do perdão, da reconciliação e da cura.

Era já esta a situação à época do Concílio. Não obstante as evidentes melhorias da reforma litúrgica do Ritual – aprisionada pelos canonistas ao modelo tridentino – era esta a situação aquando do Sínodo dos Bispos de 1983. É esta a situação atual, agravada pela tragédia dos «abusos». Urge um novo olhar para este Sacramento de que tanto carecemos. Porque não basta pedir perdão. Sem duvidar da soberania da graça de Deus e do «opus operatum» dos sacramentos (mas para que haja sacramento são necessários requisitos…), também não adianta multiplicar as absolvições. A Igreja precisa de recuperar a Penitência: virtude e sacramento. Qual a atenção do processo sinodal a este tema?