
Por M. Correia Fernandes
Lembro um escrito que se pode encontrar numa obra emblemática da nossa literatura do século XX:
Nasci num tempo em que a maioria dos jovens haviam perdido a crença em Deus, pela mesma razão que os seus maiores a haviam tido – sem saber porquê. E então, porque o espírito humano tende naturalmente para criticar porque sente e não porque pensa, a maioria destes jovens escolheu a Humanidade para sucedâneo de Deus” (Fernando Pessoa, Livro do Desassossego por Bernardo Soares, texto datado de29-3-1930).
Este texto tem quase um século e foi escrito, por um homem de pensamento com cerca de quarenta anos, em tempo de crise económica, no intervalo entre duas guerras, de crise de ideias, e de crise da religião, saída das iconoclastias republicanas e da sua insensata tenção de acabar com o catolicismo ou com a religião em Portugal no espaço de trinta anos, como sentenciara Afonso Costa em 1911.
Não embarquemos portanto pelos caminhos dos cépticos ou dos desalentados. Fernando Pessoa não era católico mas era crente e claramente marcado pelo espírito cristão, e lembra então, como hoje, um fenómeno que vem percorrendo sistematicamente os tempos modernos, como os tempos mais antigos: a perda da fé e sobretudo da prática religiosa. Pessoa detecta-o como fenómeno social, para fazer a sua crítica, lembrando que, perdida a crença em Deus outra crença se levanta em sua substituição, mas dando conta de que, perdida primeira a segunda carece de sentido. Não se pode ter fé na Humanidade pela simples razão de que ela não pode ser objeto de fé. Pode-se ter um mero sentido humanitário nos dias que correm e que sempre se ergue como fogo fátuo em ocasiões de catástrofes, mas que logo esquece quando se instala a normalidade e a correnteza da vida. Os surtos humanitários não deixam de ser transtornantes, porque assim como surgem assim se dissipam. Hoje vivemos o surto humanitário da violência e da guerra, da piedade pelos migrantes e pelas vítimas de tragédias naturais. Mas quando passem, logo se esquece o mais propalado humanitarismo.
Ouvimos também hoje em areópagos de diversa estirpe que a juventude moderna abandonou a fé em Deus e abandonou sobretudo a Igreja, que é depositária da fé mais antiga da Europa ocidental, ou do espírito cristão que inspira outras confissões. Para além do que constatava F. Pessoa, a juventude de hoje nem sequer substituiu a fé em Deus pela fé na Humanidade. Há décadas atrás, a juventude, certa juventude, substituía a fé em Deus pela fé na Revolução, pela fé na política igualitária do Estado centralista, pela fé no Progresso, e hoje pela crença na informática, na tecnologia ou mesmo na inteligência artificial.
Serão porventura s tecnologia ou a globalização os sucedâneos da perdida fé em Deus? Ou será que a fé em Deus só aparentemente está perdida? Ou que tal como a relva que se corta nos campos volta a revivescer quando as condições se tornam favoráveis? Quem poderia afirmar que as transformações mentais do naturalismo do séc. XIX, que pretendia destruir “cientificamente” a fé revelada, ou que as mudanças sociais e políticas dos inícios do século XX iriam conduzir a outras transformações sociais e políticas do início do século XXI? E que a perda de fé das novas gerações possa desabrochar em movimentos e acontecimentos como a Jornada Mundial da Juventude?
Nos dias que correm, somos avassalados por uma comunicação social que transforma em desconcerto geral os casos da pedofilia que importaria tratar como aquilo que são: dramas lamentáveis da ação individual, que deverão e estão a conduzir à responsabilização dos autores e que, segundo o melhor espírito jurídico, lhes proporcionem a sua recuperação psicológica e humana.
Seria talvez de lembrar aos próceres do poder absoluto da comunicação social que este tempo de quaresma propõe o primeiro jejum, recomendado pelo Papa Francisco: o jejum da palavra difamatória, ou do discurso do ódio. Ou o jejum, que traria uma nova saúde ao universo social, que era o de não transformar as árvores em florestas. E o de não se transformar a divulgação em suposição, ou em condenações, geralmente através de fórmulas como denúncias, generalizações e calúnias. E substituir pelo “acesso à misericórdia, à ternura e à alegria que propõe”, “em nome de Deus”. (O que vos peço, em nome de Deus, Ed. Presença, pág.46).
Isso exige o respeito por todos, de forma especial o respeito pelas vítimas.