
Uma leitura do filme “Um Homem Chamado Otto” *
Por Alexandre Freire Duarte
Não há como negar que “Um Homem Chamado Otto” tem na sua raiz um, e se desenvolve num cenário sombrio. Ocorre, porém, que o seu diretor logra (por inclusões humorísticas e uma boa dose de cor e vida) um ponderado equilíbrio entre os géneros do drama e da comédia, acabando por produzir um filme arguto, franco, sério e sóbrio, mas apenas mediano.
Nem tudo tem que ser excelente – basta olhar para mim e o que faço –, mas a dita mediania é superada em alguns aspetos: as personagens são atraentes e os atores conseguem dar-lhes vida no meio de temas que não esmagam. Tom Hanks, oscilando entre o pegajoso e o idiossincrático, consegue, com ténues matizes, operar a transição do carácter da figura principal; Mariana Treviño, essa, é do melhor que este filme tem para dar, com a sua energia calorosa, hilariante e intensa; os restantes atores, esses, trazem para esta obra uma delicadeza adicional que ajuda a que acabemos por estar ante um produto (enlatado?) bem oleado, sedutor e aprazível, não obstante uma patente romantização politicamente correta.
Conheço poucas pessoas que não sejam, neste ou naquele momento, rabugentas. Mas também conheço quem só está bem a rabujar, não porque queiram incomodar quem quer que seja, mas porque isso fá-las sentirem-se bem. As histórias por detrás desta condição são certamente muitas, mas a perda de algo ou de alguém querido está presente na maioria das mesmas. A fixação no passado ferido e a ferir, do ponto de vista teológico, é compreensível, mas também doentia na sua dimensão idolatrizante que nos arruína a esperança, a alegria, a felicidade. O Espírito, Deus em nós, está sempre a fazer realidades novas – e novas também em nós – e precisamos de estar atentos a elas, se não por e para nós, para e pelos demais.
Outro aspeto teológico a relevar, é que sozinhos não somos quem poderíamos ser: viver a ser ajudado e a ajudar não é algo de secundário na nossa existência de cristãos; é uma expressão kenótico-gloriosa de quem vive a ser discípulo de Jesus; de quem tem como objetivo algo acima da moral, mas tomando decisões com implicações morais que relevam e elevam a sua liberdade. Só isto deveria ser suficiente para existirmos em gratidão espiritual contínua, com um sorriso genuíno e nem que em silêncio, por tudo e a todos, deixando que ocorra uma interpenetração entre nós e uma nossa envolvência que está prenhe de Deus.
“Um Homem Chamado Otto” lembra-nos, amiúde e por vezes de modos muito básicos (talvez por não termos saído daí), aquilo que a nossa vida de cristãos nos devia ter ensinado naturalmente. A saber: que a vida em relação com um, e num, Deus-comunidade só ocorre através da bondade, da amizade, da fraternidade e do cultivo de uma boa vizinhança que se renova serenamente. Numa palavra: por um amor e uma Vida que, às vezes, nem sabemos o que são, embora possamos apontar algumas das suas qualidades e ações mais comuns. Tudo isto será uma rede viva para quando estivermos aflitos vivermos sem desespero, antes com fé.
Mas esse amor e essa Vida são onerosas. E são-no, pois são formadas por passos pequenos no meio de uma vida por vezes tão bela quão cruel. Uma vida que, não devendo jamais ser dada como garantida, só em parte é nossa, porque a sua Meta, adquirida e oferecida pelo Amor (e embora já esteja a crescer em nós), está, na sua plenitude, fora de nós; donde perguntemo-nos sempre: a quem ignorei? a quem recusei compaixão? a quem…? …
(* EUA, Suécia, 2022; dirigido por Marc Forster; com Tom Hanks, Mariana Treviño, Rachel Keller, Manuel Garcia-Rulfo e Cameron Britton)