Por M. Correia Fernandes
Para comemorar os dez anos do pontificado do Papa Francisco, que se iniciou em 13 de março de 2013, a Editorial Presença reuniu um conjunto de mensagens e ensinamentos seus, num volume com o título “O que vos peço em nome de Deus”: Dez ideias para um futuro com esperança. A edição é deste mês de março de 2023, e recolhe um texto original em castelhano, depois traduzido em italiano e agora em português, em tradução de Filipe Guerra.
As 10 ideias, em forma de pedidos, são as seguintes:
1 Peço em nome de Deus, que a cultura dos abusos seja extirpada da Igreja; 2 Peço em nome de Deus que protejamos a Casa Comum; 3 Peço em nome de Deus uma comunicação social que combata as fake news e evite os discursos do ódio; 4 Peço em nome de Deus, uma política que trabalhe para o bem comum; 5 Peço em nome de Deus, que cesseis a cultura da guerra; 6 Peço em nome de Deus, que sejam abertas as portas aos emigrantes e aos refugiados; 7 Peço em nome de Deus, que a participação das mulheres seja promovida e encorajada na sociedade; 8 Peço em nome de Deus, que seja facilitado e defendido o crescimento dos países pobres; 9 Peço em nome de Deus, que seja garantido a todos o direito à saúde; 10 Peço em nome de Deus, que o Seu nome não seja utilizado para fomentar as guerras.
Lemos então que os pedidos do Papa se situam em âmbitos diferenciados mas complementares: o âmbito da Fé e da própria Igreja (os abusos, a utilização do nome de Deus); o âmbito da informação e da linguagem (as notícias falsas, a linguagem do ódio); o combate à pobreza e o desenvolvimento das sociedades nos países pobres para que não tenham necessidade de recorrer à emigração; o abandono da cultura da guerra; a promoção e valorização da mulher na sociedade (incluindo na Igreja, onde sempre desempenhou papel relevante).
Este conjunto é apresentado, na introdução que escreve, de forma justificativa o próprio Papa Francisco, salientando a necessidade de grande união para que possam ser levados a cabo, exigem esforços comuns, falando até do evitar a evasão fiscal e obviamente a capacidade de os jovens se organizarem e se mobilizarem, solicitando: “Peço-vos, então, que vos junteis a mim nestes dez pedidos”.
Todos esses pedidos têm fundamento nos ensinamentos das menagens já transmitidas, e fundadas em textos essenciais da tradição, como o Catecismo da Igreja Católica, o Compêndio da Doutrina Social da Igreja, as encíclicas Ecclesiam Suam e Fratelli Tutti, a exortação apostólica Gaudede et exultate, a encíclica Ludato Sì, e os já clássicos textos Gaudium et Spes e Solicitudo rei Socialis ou Populorum Progressio.
O livro conclui com um “epílogo” valorizando os caminhos da esperança, recordando a palavra do papa João Paulo I como virtude obrigatória para os cristãos, mas que deve também “transcender as fronteiras dos crentes”. Esta é uma dimensão importante desta mensagem: a palavra da Igreja não é constituída apenas uma dimensão “ad intra”, mas surge sempre com a dimensão “Urbi et Orbi”, dimensão esquecida habitualmente e menos ainda posta em prática pelos poderes e pelos saberes das sociedades nacionais (quer do universo europeu onde nasceram os humanismos, quer do universo asiático onde proliferam teorias e religiões, quer do universo americano, onde o espetáculo e a propaganda imperam).
Comentário
Está clara a oportunidade e utilidade desta publicação, ao reunir nas palavras dele próprio toda a riqueza e atualidade das mensagens do papa Francisco e a capacidade que todos lhe reconhecem de saber transmitir a densidade da doutrina numa linguagem que procura responder às realidades e conceitos mais comuns nos dias de hoje. À solidez da doutrina é capaz de associar as linguagens dos universos sociais das problemáticas da sociedade destes tempos. Entre essas dimensões encontra-se um dos maiores dramas de hoje: os gastos mundiais em armamento, “um dos maiores escândalos morais da era atual” (pág. 61). Poucas vozes se levantam nestes dias perante as notícias dos milhares de milhões para conduzir à destruição, e da ausência de milhares de milhões para a reconstrução, e a exaltação das despesas com a manutenção da guerra.
Uma das necessidades mais prementes da economia e das estruturas sociais e organizativas do mundo hodierno é o crescimento económico e o desenvolvimento social e humano dos países pobres. Trata-se de um problema que, no meio das sucessivas convulsões bélicas, tem sido esquecido: a grande raiz do drama hodierno das migrações está na ausência de políticas de desenvolvimento dos países pobres que deveria ser assumida e operacionalizada pelos países ricos. Profeticamente, recordo as palavras de um antigo líder do Partido Comunista de Espanha, que proclamava numa conferência a que pude assistir, que se não promovermos o desenvolvimento dos países africanos e asiáticos, acabaremos por ser por eles invadidos, na miragem da riqueza, do bem-estar e do desenvolvimento social. Acresce que esses países pobres são a origem das riquezas exploradas pelas forças dos países ricos.
É esse drama que está agora a acontecer. Em vez de a comunidade internacional promover o desenvolvimento económico e social desses países e regiões, nos seus próprios espaços geográficos, foi junto deles fazer a guerra e esquecer o desenvolvimento humano, social e cultural. As Nações Unidas têm-se preocupado mais em gerir conflitos do que em evitar conflitos. Agora escreve o Papa Francisco: “Apoiar e incentivar o crescimento dos países pobres é uma questão crucial” (pág. 95).
Eis a suprema contradição: todos falam e enaltecem a riqueza, as guerras (basta ver como se gastam dinheiros em notícias bélicas), os espetáculos grandiosos, os universos mirabolantes do exibicionismo, e se esquecem os dramas humanos, excepto quando se podem transformar em espetáculo.
Dois casos atuais que o Papa aborda: a) o dos abusos sexuais de menores, afirmando o óbvio, que é dramaticamente esquecido nas movimentações mediáticas: “Enquanto a justiça não os condenar, não devemos esquecer a necessidade de garantir a todos um processo justo das pessoas envolvidas” (pág. 20). É este fenómeno social que está a assolar a nossa sociedade, o qual chama “a cultura do boato”, tantas vezes baseada no anonimato dos que acusam (pág. 21); e b) “Renovo os meus pedidos para que os meios de comunicação deixem de usar a lógica da pós-verdade, da desinformação, da difamação, da calúnia e do fascínio pelo escândalo” (pág.38).
Terá Francisco lido a nossa imprensa, as suas parangonas, os seus comentários pseudo-bem-intencionados, moralistas e recriminatórios?
Creio bem que não. Mas a nossa comunicação social também não sabe nem parece querer ler o que o Papa Francisco pede “em nome de Deus”…