
Por Jorge Teixeira da Cunha
A crise dos abusos em que a nossa Igreja está mergulhada há um quarto de século oferece-nos ocasião para pensarmos o tema do crescimento ético da humanidade. Entendemos por crescimento ético a efectivação, no terreno vivencial e normativo, da estima dos valores morais. No caso da crise em que estamos mergulhados, trata-se da generalização do respeito pelas crianças. Ora este respeito pela criança está realizado em plenitude no Evangelho de Jesus, mas apenas recentemente se tornou efectivo na história humana, ao nível moral e jurídico.
A Igreja é um espaço de abertura ao Reino que é sempre imperfeito. É um sacramento da plenitude que a ultrapassa sempre e, não raro, a sua missão é sacrificar-se para que o Reino possa triunfar na história. No Império Romano, a Igreja sacrificou-se para nos seus mártires para que pudesse nascer o gérmen da liberdade religiosa; na conversão dos Bárbaros fez-se silêncio nos mosteiros para que uma nova civilização pudesse crescer lentamente; no grande impulso missionário moderno, implantou-se nos outros continentes em formas criativas admiráveis; no tempo das revoluções, a perseguição foi sal e luz para que pudessem emergir os Direitos Humanos e as liberdades. Quase sempre as inovações apareceram a muitos como uma negação da fé. E, no entanto, mais profundamente, era o Evangelho que germinava no Inverno da antiga instituição.
A crise dos abusos tem algo desta forma de realização escondida de uma virtualidade do Evangelho.
É um facto que o ser criança foi vista durante milénios como etapa de transição para a idade adulta, uma humanidade sem direitos e sujeita a todas as arbitrariedades. As famílias tinham direito de vida e de morte sobre as crianças; em muitos casos abusavam delas pelo trabalho extenuante e por muitas outras formas de desrespeito.
Ainda no séc. XVIII, na Europa, poucas eram as crianças que beneficiavam de educação e de protecção das famílias e do Estado. Dizem que o filósofo Voltaire, expoente do pensamento iluminista, ignorava o número de filhos que tinha e pouco se importava com isso. Parecer justo reconhecer que a Igreja teve um papel determinante no desenvolvimento da educação das crianças. Basta ver o número de congregações religiosas que nasceram no séc. XIX para a educação, no contexto da revolução industrial e política. Foi a partir que se desenvolveu o direito à educação para todos que é um dado adquirido, felizmente, pelos Estados de hoje. Foi a santidade de alguns grandes educadores, como é o caso de S. João Bosco, S. Paula Frassinetti, Helen Keller, e alguns outros, que lembrou à Igreja a sua missão de inovar o mundo da educação das crianças e o seu tratamento humano. A Igreja teve sempre medo de se perder como instituição estável, quando viu despertar formas novas de vivência dos valores do Evangelho.
A actual crise dos abusos é, sem dúvida, uma evolução ética da humanidade, mas, como a generalidade dos momentos de evolução, faz a Igreja tremer e desencadeia em muitos o medo perante a desinstalação que a fidelidade ao Evangelho sempre ocasiona. “Vós sois o sal…”. Ora o sal age desaparecendo. Para que triunfe o Reino de Deus, a Igreja experimenta momentos de perdição. Parece que é isso que explica o estranho modo de agir da nossa Igreja. Mas esse é o seu destino. Para que a infância seja valorada como deve e se consolide, a nível ético e jurídico, o respeito das crianças, um velho modo de proceder eclesiástico tem de dar lugar a outro.
Por isso, é necessário que os clérigos de hoje tenham grandeza de alma para olharem mais para o Evangelho do que para a sua segurança. Colocar-se no lugar dos últimos e nos últimos lugares pode significar, hoje, retirar-se espontaneamente, pelo menos até se fazer justiça, para que a Igreja possa continuar a existir como sinal do Reino. Esta liberdade e esta amplitude de espírito precede mesmo o legítimo direito à presunção de inocência que deve ser garantido a todos, mesmo aos culpados.