Uma leitura do filme “Os Olhos de Allan Poe” *
Por Alexandre Freire Duarte
Durante anos, e no tempo que estive intermitentemente associado ao Centro de Estudos do Pensamento Portuense, pude deliciar-me a ler os grandes autores de novelas de romantismo gótico desta cidade do Porto. Mas Edgar Allan Poe está noutra “margem” de todos eles e este filme retrata como é que, de um simples adulto jovem, surge o Poe que nós conhecemos. Fá-lo com uma direção pristina e misteriosa, uma fotografia emblemática e absorvente, uma banda sonora cuidada e um elenco escolhido “a dedo”.
Na realidade, estamos ante uma história gótica detectivesca, cimentada numa atmosfera de ambientes perturbadores e tiques pessoais sombrios (próprios de começos de oitocentos, em que as mais sinistras e funestas superstições ainda tinham peso) retratados com inteligência. Porém, isto funciona mais como o panorama imaginativo, imensamente astuto e devotamente desprovido de desapegos ocultos, para o pavoroso e caloroso narrar daquele surgir. Um narrar que, com o final mais inesperado dos últimos anos, funciona desde a eficaz cooperação, quase em tons familiares e marcada pela penosa partilha de segredos numa envolvência desassossegada, entre as personagens do acutilante e abismado Bale e de um hipnotizante, resplandecente e ventoso Melling.
Disse, acima, que em inícios de oitocentos a superstição pesava. Nesse aspeto, não progredimos muitos, mas hoje mistura-se a linguagem científica, tirada do seu contexto, com a crescente autoconsciência da apreensão das pessoas, e eis-nos rodeados de pseudociências (como a astrologia, o espiritismo, o Feng Chui, o Reiki, etc.) que exploram a dor e a aflição de milhões. Neste contexto (acrescido com o nos ensinarem a viver com camadas e camadas de “máscaras” de “falsidade” para sobrevivermos numa sociedade malsã), uma apreensão central para a teologia é: que pressão tais pessoas logram aguentar até fenderem numa violência interna e externa que erode a moralidade?
Todos temos segredos, mas se nos esquecermos daquele que nos é central – não somos tão bons, nem tão maus no amor –, os horrores, assim mostrados sem explicações simples, convertem-se em “bolas de neve” neste nosso já de si frágil mundo. Quantas vezes vivemos com pessoas que intuímos que não são quem parecem ser? Pessoas que, quão mais poderosas e intimidantes são, nos surgem como mais grotescas apenas pelo desacordo entre o que fazem – e vemos – e o que são – e não podemos não pressentir?
Ocorre que o passado nunca fica só para trás, nem sequer quando posto em Deus (embora neste caso possa surgir sanado), antes empurra o presente e obscurece o futuro. Assim sendo, faz-nos esquecer, e levar a uma vida de excentricidade cómica “para quem tem olhos para ver”, que, por maior que possa ser a desarmonia entre quem se é e quem dever-se-ia ter sido, as pessoas mais “palpavelmente” importantes das nossas vidas são aquelas com quem, colaborativamente, nos cruzamos hoje e nos cruzaremos no futuro.
Assim, não inquiramos os demais, mas a nós, falando, a Deus e na oração, sobre quem somos, e perguntemos: que lugar temos, em nós e com o Seu amor sacrificial, para aqueles? Protejamo-los, pelo menos, das nossas mentiras e de quem as deseja enganar, atestando, com o nosso viver, que só Deus é Deus e que nem o futuro Lhe está fechado, pois Ele é a Humildade que deixa que as nossas decisões entrem na Sua providência.
(* EUA, 2022; dirigido por Scott Cooper; com Christian Bale, Harry Melling, Robert Duvall, Toby Jones e Gillian Anderson)