
Por Secretariado Diocesano da Liturgia
O Missal Romano, na sua renovada edição portuguesa, surpreende-nos, quase ao virar de cada página, com formulações inesperadas que nos obrigam a voltar a trás e a ler de novo, para acolher a «novidade» de um sentido inédito que na versão anterior passava desapercebido. É o caso das orações Coleta e Sobre as Oblatas do I Domingo da Quaresma em que a oração da Igreja fala do «venerável sacramento da Quaresma» e das «práticas anuais do sacramento quaresmal». E recordamos alguns debates conciliares mais calorosos, a propósito da que viria a ser a Constituição dogmática Lumen Gentium, em que alguns bispos punham reticências a propostas de redação em que a própria Igreja era declarada «sacramento». Mas, afinal, quantos são os sacramentos? Não ensinou o Concílio de Trento que os sacramentos da nova Lei são sete, nem mais nem menos, e os enumerou – Batismo, Confirmação, Eucaristia, Penitência, Santa Unção, Ordem e Matrimónio –? Foi então necessário recordar aos Padres Conciliares que já tinham aprovado anteriormente uma Constituição sobre a Sagrada Liturgia em que se dizia que do lado de Cristo adormecido na Cruz jorrou o maravilhoso sacramento de toda a Igreja (SC 5) e que a Igreja é «sacramento de unidade» (SC 26). Como é que não tinham reparado ainda nisso? A resposta era simples: é que essas expressões, consagradas na Constituição sobre a Sagrada Liturgia, eram provenientes da Liturgia e da Patrística. De facto, a primeira era e é rezada na Vigília Pascal (oração depois da segunda leitura de Sábado Santo antes da reforma da Semana Santa, no Missal Romano e após a 7ª leitura no MR atual) e a segunda consta de um famoso escrito de São Cipriano de Cartago (De Cath. Ecc1. unitate, 7). E, naturalmente, ninguém ousava questionar a autoridade doutrinal de fontes tão qualificadas.
Na linguagem dos Padres da Igreja, da Liturgia e dos teólogos até aos séculos XII-XIII, a palavra «sacramento» não tinha o sentido técnico que posteriormente assumiu quando se restringiu o seu uso exclusivamente às sete ações salvíficas que integram o septenário. Para os Padres, a História da Salvação está prenhe de «sacramentos» ou «mistérios» (estas duas palavras, uma de origem latina e outra de proveniência grega, usavam-se como equivalentes), isto é, de acontecimentos, de conteúdos de revelação que apontavam já para Cristo e para a sua obra redentora e que, por isso, eram portadores de salvação a acolher na fé. Aliás, era já assim que São Paulo compreendia o relato da criação do homem e da mulher e da sua união conjugal como referentes à união esponsal de Cristo e da Igreja e por isso o qualificava como um «grande sacramento» ou «grande mistério» (conforme as traduções) (Ef 5, 32). Com tal qualificação São Paulo dá a entender que a união de Cristo e da Igreja revela o sentido escondido mas realmente presente na união primordial do homem e da mulher para formarem «uma só carne». Revela e redime e, doravante, torna-se o novo ponto de partida para compreender e viver a união conjugal dos que, pelo Batismo, pertencem a Cristo e se desposam em Cristo.
Por isso, sem questionar o sentido técnico do termo quando aplicado às sete ações litúrgicas principais da Igreja a que propriamente chamamos sacramentos, não devemos estranhar que na Liturgia e na Teologia se difunda também um uso análogo e menos restritivo do mesmo termo. E assim, nesse sentido mais amplo, também a Quaresma é «Sacramento» ou seja, acontecimento de salvação, conjunto de «exercícios» pelos quais acontece um efetivo e salvador encontro com Cristo. Aliás, de algum modo, a própria Igreja não se sente sua «autora» mas os propõe aos seus filhos como uma oferta proveniente do próprio Cristo. De facto, a Liturgia vê a Quaresma, de forma surpreendente, como uma «instituição divina»!
Sem negar a história desta importantíssima programação eclesial em função da preparação dos catecúmenos para os Sacramentos da Iniciação cristã bem, dos penitentes para a reconciliação e de todos os fiéis para a renovação pascal, a Igreja como que «encontra» na Sagrada Escritura os fundamentos da instituição quaresmal: são os 40 dias que Jesus jejuou no deserto… E, quantas «quaresmas» se encontram no AT desde o dilúvio a Moisés, desde Elias a Jonas, sem esquecer os 40 anos do êxodo de Israel desde o Egipto até à Terra de Canaã! Por todos estes motivos a Igreja, de algum modo, já encontra este tempo litúrgico instituído por Deus na Escritura… Cristo em pessoa recapitulou e deu sentido pleno às quaresmas do AT e com a sua observância «instituiu» e inaugurou este «sacramento quaresmal» (cf. Prefácio do Domingo I da Quaresma), imagem do tempo presente e preparação da páscoa eterna na Terra prometida.