
Por M. Correia Fernandes
Apresentada por Edições Húmus, editada no âmbito do projeto do Instituto de Filosofia da Faculdade Letras da Universidade do Porto, com apoio da Fundação para a Ciência e Tecnologia do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, acaba de ser divulgada, em edição de dezembro de 2022, a obra Bosco Deleitoso – Anónimo do século XV, com edição e notas dos Professores José Adriano de Freitas Carvalho, Luís de Sá Fardilha e Maria de Lurdes Correia Fernandes, com prefácio de José Francisco Meirinhos.
Trata-se de uma obra em língua portuguesa, reconhecida em todas as História da Literatura, inserida nos textos de literatura apologética e mística, associada geralmente a outra obra de inspiração franciscana, intitulada Horto do Esposo (o Esposo é naturalmente Jesus Cristo). Deste Bosco Deleitoso diz António José Saraiva (História das Grandes Literaturas – Literatura Portuguesa) que a obra é “inspirada em parte em Dante e Petrarca, em parte nos místicos medievais, como S. Bernardo, na qual se pretende dar uma experiência mística”.
Importa acentuar que a edição agora apresentada vem com o título Bosco Deleitoso, enquanto no original o título é Boosco Deleitoso, procurando assim uma simplificação da leitura. O designativo Boosco remete para o sentido de Bosque, “onde existem muitas ervas e árvores e froles e muitas maneiras, que som virtuosas pera a saúde dos corpos e graciosas aos sentidos corporais… fontes e rios de claras águas, e aves que cantam docemente e caças pera mantimento do corpo”. E acrescenta: “Desse paraíso mui deleitoso era eu, mesquinho, e lançado na profundeza do lixo dos pecados…”
A obra é dedicada à “devotíssima Reinha dona Lianor… que sempre foi inclinada a toda a virtude”. Esta dedicatória é só por si especialmente significativa, já que a rainha foi a fundadora das casas da Misericórdia, que se desenvolveram entre nós.
Esta edição recente é apresentada por José Francisco Meirinhos, e segue-se às duas edições anteriores: a original, de 1515 (no tempo do Rei D. Manuel) e uma edição crítica publicada no Rio de Janeiro por Augusto Magne, sendo ainda lembrada na Antologia de espirituais portugueses, publicada em Lisboa, 1994, pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda.
O argumento mostra uma narrativa em primeira pessoa, em que “eu, sendo pecador e mui mesquinho” se decide a ir “ao encontro deste paraiso espiritual da alma”, “Casa da boa consciência em que é tanta a abondança de paz… em que há folgança em o amor do Senhor Deus”. Uma das influências que podemos visualizar nesta imagem do Bosque poderá ser a do Cântico dos Cânticos, de cujo universo mental e visualização de espaços e personagens se encontra uma versão no painel de azulejos no claustro da catedral do Porto, com citações do livro bíblico, que pode corresponder à descrição do autor: “fontes e rios de claras águas, e aves que cantam docemente”.
Mas o mais importante a considerar nesta obra é certamente a visível influência dos dois grandes mestres do final da Idade Média e do início do Renascimento, Dante Alighieri (1265-1321) e Francesco Petrarca (1304-1374), como assinala o autor do prefácio, José Francisco Meirinhos: “Em Dante a visão espiritual proporciona um prazer… suspensão e êxtase que o olhar incendeia”, traduzido nas palavras do autor do Bosco: “Ali todos ham um prazer e huua claridade”.
Assinala-se igualmente a influência de “De vita solitaria”, de Petrarca, onde uma figura designada Frei Vicente é identificada por José Adriano de Carvalho plausivelmente como o teólogo dominicano Frei Vicente de Lisboa, que faleceu em 1401.
O autor desta “notícia de apresentação” assinala os “cuidados particulares” dos editores do texto, que o procuraram integrar ao mesmo tempo na tradição humanística e na sua presença junto do leitor atual.
Sobre a questão do autor, afirma José Adriano de Carvalho que o texto não oferece qualquer dado evidente que o permita identificar, embora possa apontar para “um monge que conhece – e propõe, disso encarregando o narrador -, como modelo da vida solitária, uma comunidade de eremitas, companheiros que se apoiam espiritualmente”, sugerindo espaços dela simbólicos como a abadia de Monserrat na Catalunha ou Camaldula nas montanhas em redor de Florença.
Entre as figuras presentes no “itinerária autobiográfico do monge narrador” apresenta-se a figura de um anjo como guiador de todo o percurso terrestre e “guardador mui direito que nunca de mi se partia”. Esta figura era já evidenciada num estudo do Padre Mário Martins, sj, que lembra a presença de Petrarca neste livro quatrocentista.
Esta “notícia de apresentação” assinala também uma dimensão que pode ser hoje especialmente relevante, que é a presença e abundância de elementos naturalistas de fauna e flora, do marulhar das águas, ou da presença constante das aves como os “cantares do rouxinol que canta toda a noite”.
José Adriano de Carvalho, perante a presença e valorização do anjo da guarda, “nesta obra de traça eminentemente monástica, publicada em pleno reinado de D. Manuel I, poderá pôr-se em relação com a devoção que ao anjo da guarda tinha o venturoso rei, de quem se conhecem algumas decisões destinada a promovê-la”, perguntando: “Uma razão mais para a edição de 1515?”, quando o rei já ia no vigésimo ano do seu reinado.
Neste universo entre a natureza, a vida campestre e a espiritualidade, em tempo de guerra e de movimentos ecológicos, talvez uma obra assim, onde figuras como a eremita Santo Antão ou o “glorioso doutor Dom Sam Jerónimo” ou S. Bento de Núrsia ou S. Francisco Assis “que ouviam as aves a sua pregaçom” (p.142), possa tornar uma obra da natureza e do universo espiritual fundamentar tanto os movimentos ecológicos como os valores da espiritualidade que parece mover algumas propostas hodiernas…