
Por M. Correia Fernandes
Tinha, por esta altura de 2022, sido iniciada a invasão dos territórios do sul da Ucrânia pelos exércitos poderosos da Federação Russa, pela pouco anunciada decisão do Presidente Putin. O mundo sentia nesse gesto e nessa circunstância a raiz da humana iniquidade, ou de uma desumana iniquidade dos detentores da força e dos poderes. No editorial de 30 de março desse passado ano, lembramos neste local a expressão usada pelo Papa Francisco na oração pela paz no dia 25 desse março de 2022: a iniquidade da guerra. E perguntávamos: O que é a iniquidade da guerra? Lembrávamos um subconsciente ínsito nos nossos conceitos e na nossa linguagem que definem ou supõem o relacionamento social: o conflito de interesses ou de afirmações pessoais ou de grupo, a tendência para entendermos as forças sociais como realidades opostas ou contraditórias, e não como entidades colaborantes para a equilibrada organização social e para a convivência pacífica entre os seus membros e as suas funções complementares. O mesmo se diga do espírito que enforma as relações entre governos e oposições: basta ouvir os fervorosos discursos parlamentares para verificar que têm no subconsciente o espírito bélico.
Igualmente as ações bélicas do século XX (e de todos os séculos anteriores), as recentes intervenções e invasões de alguns países sobre outros, com realce para a insensata ação das tropas americanas em espaços mundiais como o Vietnam ou o Médio Oriente nos façam agora exercitar de novo o conceito de guerra. Parece que este espírito de confronto, presente também em todas as teorias revolucionárias, origina que a linguagem bélica se torne fonte justificante de toda a agressão. Nada está em ação que primeiro não esteja no espírito ou no subconsciente mental e cultural. Em vez do caminho do diálogo e da não violência, de reforçar o espírito de solidariedade, avança-se pelo caminho da confrontação. Em vez do apelo do Papa no ano passado, em que pedia: “Que se parem, que se calem as armas, e se negoceie seriamente para a paz”, temos vindo a assistir ao recrudescimento da guerra e da revalorização dos instrumentos bélicos. E cultiva-se o culto da colaboração pelas armas em lugar das propostas de paz.
Como é significativa a leitura das palavras do padre António Vieira, que falava da “temerosa desconsolação” da guerra, lembrando que “Todas as guerras deste mundo se fazem a fi m de conseguir a paz: mas a paz não se conquista com exércitos, senão com igualdade e justiça. A desigualdade é a causa da mais perigosa guerra”.
Não há fórmulas mágicas, há palavras e gestos de prece e conciliação. Palavras não de nova confrontação, mas de superação das confrontações, formas de diálogo e de consciência interior, formas de sentido espiritual, que se devem traduzir nas palavras para que estas gerem ações, e na linguagem para que esta conduza a comportamentos.
Um ano passado, após ingente destruição provocada, de muita civilização destruída de muitas vidas perdidas, incluindo entre aqueles que promovem as guerras, ouvimos agora falar de novo de negociações, de mediações de diálogo a partir de vários países, que no entanto se afogam no lodo da desconfiança e no universo dos interesses instalados ou buscados, como bem traduz a bombástica e surrealista declaração de Putin (lida hoje,27 de fevereiro de 2023) de que “a guerra na Ucrânia é uma batalha pela sobrevivência da Rússia”. Com efeito, o grande mal é que os doutores desta arte pensam que sabem tudo e agem como se soubessem, e daí nasce o erro e a violência.
É mais uma vez oportuno recordar as palavras do papa Francisco neste domingo último de fevereiro e primeiro da Quaresma, ao lembrar as “tentações do poder e da desconfiança”, que minam tanto a vida dos cristãos, para quem especialmente falava, mas de todas as pessoas, todos os poderes, todos os Estados, todos os governantes, todos os parlamentos e todas as organizações sociais.
É oportuno relembrar o espírito das tentações de Jesus Cristo, que são as tentações da inteira humanidade: a da autossatisfação, a da riqueza e do poder, e a do afastamento do espírito que edifica a pessoa na sua integridade humana. No dizer de J. Ratzinger, “a divinização enganadora do poder e da pessoa, o bem estar, a promessa enganadora dum futuro que garante tudo a todos através do poder e da economia, Ele opôs a natureza divina da Deus como verdadeiro bem do Homem” (Jesus de Nazaré, p. 70, analisando a episódio das tentações).
Ao lembrar e escrever estas palavras salta-nos diante dos pela notícia de que “A Rússia rejeita o plano de paz proposto por Pequim”, que se tinha oferecido para mediar o conflito. “Dar-te-ei todos estes reinos se prostrado me adorares”, diz o texto bíblico… Porém a mensagem continua ser “buscai a unidade do espírito pelo vínculo da paz” (Efésios 4,3).