O Cinema visto pela Teologia (57): “A Fuga do Capitão Volkonogov”

Uma leitura do filme “A Fuga do Capitão Volkonogov*​​

Por Alexandre Freire Duarte

Uma originalidade para findar – até aos Óscares? – os filmes de 2022 e entrar nos que já vi este ano: um filme russo a ser trazido até estas páginas. Realizado antes da invasão à Ucrânia, sim; mas mesmo que não tivesse sido, deveria o seu valor ser ignorado “apenas” por isso? Não se aprecia a teologia de Cirilo de Alexandria apesar do que foi a sua atónita vida? Eis esta obra, pois, como uma inventiva e perturbante história tão distópica, quão real, face aos horrores das purgas estalinistas da década de 1930, e, talvez, a outras purgas mais coevas, como as do cancelamento imaturo ao banimento organizado das redes sociais (e não só).

A história é, deveras, uma trama de horror, em que alguém, descobrindo a verdade da mentira em que vive, começa um longo percurso de autodestruição até à paranoia que o torna materialmente lúcido, embora espiritualmente cego. Politicamente impetuoso e de estrutura condensada, este filme coloca-nos, de “cara séria”, igualmente ante uma comédia alucinatória, mas com toques de sobriedade realista que, cheios de perspicácia e compaixão, nos fazem entrever, na correria da obra, os níveis mais profundos das intenções dos diretores.

Estas surgem bem enquadradas pela explosiva e nuançada atuação de Borisov, os planos centrados no rosto deste, o vestuário, a simplicidade narrativa, as alusões cruzadas a Dostoiévski e Gogol e os cenários convincentes, embora por vezes forçados e estilizados.

De uma ótica teológica, este filme é uma visão do que seria o Mundo sem Deus: um local totalitário de insanidade brutal e em que as expectativas de redenção seriam apenas sonhos escorregadios dentro de sonhos fugidios, em vez de uma Realidade que, sendo uma Pessoa que é uma Presença, não se imagina, antes se encontra: Jesus. Um Jesus que mostra que cair não tem importância conquanto seja a subir atrás d’Ele, para descermos com ele até todos os sítios onde persiste a inumanidade do ser humano para com o ser humano. Onde, contra tudo o que cremos como cristãos, parece não haver uma ponta espiritual de bondade, beleza e dignidade, no meio da mais bruta crueldade mundana que resvala para o inferno.

Um Mundo assim seria um Mundo “do outro lado do espelho”, totalmente distorcido, confundindo-se segurança com assassínios; terapia com tortura; e, sobretudo e como mostra esta obra de soslaio, pedidos de perdão, por mais que desesperados, com uma qualquer ambição egoísta que nos convence que, afinal, não há Céu que se mereça. Claro que nenhum de nós merece o Céu por si próprio, mas, em Cristo, é essa a nossa “casa” definitiva e não um qualquer vulcão cheio de ódio, ressentimento, inveja, perversões, etc., em que existiremos a dizer, sem pingo de caridade, a verdade do desamor do outro a ele e a todo o momento.

A verdade, de qualquer modo e neste Mundo em que vivemos com Deus, custa: em ser conhecida e vivida. Mas se o abrirmo-nos a ela pode causar, às vezes, problemas mentais, não nos esqueçamos que estes tratam-se sobretudo no coração. E se em tal verdade vivermos com a Verdade, então seremos nós mesmos em autenticidade e, assim, a santidade do Céu passará a ser uma onda contínua a propagar-se da luz desse coração, que é uma força e nunca um fim.

(* Rússia, França, Estónia, 2021; dirigido por Alexey Chupov e Natalya Merkulova; com Yuriy Borisov, Timofey Tribuntsev, Aleksandr Yatsenko e Viktoriya Tolstoganova)