
Por Jorge Teixeira da Cunha
Tomamos este título de uma meditação de Henri de Lubac sobre a Igreja de Cristo, num momento de dificuldade que passou por causa do seu trabalho teológico que só muito mais tarde foi reconhecido. Em tempos sombrios, há melhor luz para reconhecer a Igreja como mistério e não apenas como organização humana. Essa expressão serve-nos para caracterizar o actual momento da Igreja portuguesa, após a divulgação do relatório da comissão que ouviu os relatos de abuso de crianças, menores e vulneráveis por parte de membros do claro e outros agentes de pastoral.
Por muito que nos custe, não podemos continuar a negar uma evidência dos abusos, como alguns, mesmo como responsabilidades, tinham feito desde há muitos anos. Está patente a nossos olhos aquilo que parecia inacreditável. Foi necessário que um grupo independente nos pusesse diante dos olhos o que não queríamos ver. Mesmo sem conhecermos a identidade de quem é responsável pelos crimes, coisa que virá a ser um manancial para os meios de comunicação, nem as consequências a que levará esse conhecimento, podemos fazer uma meditação sobre esta nova etapa daquilo que é um sofrimento sem fim para as vítimas e um embaraço para quem tem mais responsabilidade na condução da comunidade cristã.
A primeira coisa que parece necessário evitar é uma espécie de triunfalismo que esteve patente na divulgação das narrativas de abuso. Desde logo, uma vez que, mais cedo ou mais tarde, podemos chegar à identificação das vítimas em causa, as quais têm direito ao resguardo da sua identidade e a manter o segredo sobre o drama que viveram e tiveram a coragem de contar. O espectáculo da divulgação, com voz plangente, pelos membros da comissão não foi edificante. Podem dizer-nos que a divulgação foi feita em benefício das próprias vítimas. Mas quem tem um pouco de conhecimento sobre os meandros obscuros da alma humana sabe bem como há um prazer perverso nisso e em outros relatos de tragédia que expõem o rosto vulnerável das vítimas indefesas. Podemos dizer o mesmo da exposição da cabeça dos criminosos, como se fazia no passado, e que hoje olhamos com fundado sentimento de escândalo. A verdadeira justiça é outra coisa.
A segunda coisa que ocorre dizer é que os homens de Igreja que somos não podem viver estes dolorosos momentos fazendo figura de corpo presente, como se o assunto fosse de responsabilidade alheia, e nos bastasse uma expressão de sentimentos sobre uma matéria que olhamos desde um ponto de vista abstracto e exterior. Este modo de proceder é motivo de incómodo para muitos fiéis, e mesmo de escândalo para muitos observadores externos. Pelo contrário, a evidência dos abusos é um problema de todos, segundo diversos níveis de responsabilidade. Por isso, ocorre que cada um caia em si e assuma o que está a acontecer, com valentia e hombridade. A Igreja não pode recuperar a confiança dos fiéis e da sociedade sem um processo de conversão muito profundo, corajoso e consequente. Aqui está um belo caminho para dar sentido à proposta de organizar a Igreja segundo o princípio da sinodalidade, como a propõe o Papa Francisco.
A terceira coisa que nos parece útil dizer é que a Igreja não pode deixar por mãos alheias a tarefa de sanar os danos causados às vítimas e a recuperação de quem se tornou responsável pelos abusos. Isto quer dizer que a Igreja tem o poder e o dever de desencadear processos de reconciliação. Essa é a sua missão originária e inalienável. O ser humano é e será pecador e só o perdão e a reconciliação podem ser o caminho para superar o mal. Por isso, a via da aplicação de penas eclesiásticas e civis é indispensável, mas não basta. Sabemos por experiência que a lei, por si só, mata e apenas o perdão, que é um caminho doloroso, salva. Mas precisamos de o propor, coisa que ainda não fizemos. As ciências humanas podem ajudar no processo de reconciliação, sem dúvida. Mas não basta à Igreja encontrar um bolsa de psicoterapeutas para ajudar vítimas e abusadores. Dizemos isso com todo o respeito pelo contributo da psicoterapia. Mas, com toda a clareza, achamos necessário dizer que a Igreja, perita no sacramento da reconciliação, não pode deixar de estar na linha da frente da cura das pessoas.