O Cinema visto pela Teologia (56): “Os Fabelmans”

Uma leitura do filme “Os Fabelmans*

​​Por Alexandre Freire Duarte

Spielberg não é um realizador de cinema. É um ícone, venerado por muitos, mas que, ultimamente e por seu lado, também idolatriza a “religião” de Hollywood, com os seus “mandamentos” e “credos”. E se “Os Fabelmans” não é tão bom como podia ser, é porque ele tem medo das “heresias” e “punições” desse “culto” e, assim, cair no chão desamparado.

Esta obra é uma semi-ficcionalizada auto-biografia de Spielberg (centrada na relação da personagem principal com os seus pais), nem muito sentimental, nem demasiado pesada, nem demasiado engraçada. É, assim, mais uma aula de cinema, do que uma narrativa com que nos identifiquemos facilmente. Mas atenção: este drama é dirigido com genuíno calor e firmeza auto-reflexiva. E isto faz dele, quer um filme assaz artificial, sem as subtilizas da vida quotidiana e com as personagens ultra-controladas; quer uma chuva de estrelas-cadentes charmosa, aliciante, encantadora e com um toque humano e compassivo que merecem ser assinalados, ao tratar da vida familiar, dos pais impotentes e dos medos da juventude.

No fundo, estamos a ver uma câmara de cinema a ser colocada dentro de outra, com cenas com claros “princípios, meios e fins”, em que as misturas de paletas pessoais dos atores saem discretamente daquele controlo e misturam um sabor, uma reflexão, uma ansiedade que denota saberem estar a ser dirigidos por Spielberg. Talvez este tenha querido essa mistura de autodomínio e subversão para obter desempenhos vívidos que, conjuntamente com diálogos incisivos e ajustados ao milímetro, lhe permitisse assinar mais uma obra de arte pop que celebra como os filmes nos ajudam a entendermo-nos desde uma perspetiva estética.

Mais uma vez nos defrontamos com dois temas que já aqui trouxe, talvez por terem sido, ao longo dos anos, realidades tão gritantes que precisam de ser tratadas uma e outra vez. Em primeiro lugar, o dos problemas que os desajustes familiares, neste caso fruto da falta de equilíbrio entre o empenho no trabalho e a solidão afetiva, podem trazer problemas, graves e duradoiros, a muitas pessoas, sobretudo os mais inocentes neles: os filhos. Isto leva a um modo peculiar de encarar a realidade que dificilmente escapará à avalanche de abalos que impedem de se verificar em Deus e no serviço a verídica felicidade que não fere a ninguém.

Depois temos o, verdadeiramente nefasto, “segue o teu coração”, pois, na maior parte das vezes e por mais que isso tenha o odor do romantismo por todo o lado, não se está a ir atrás senão de um narcisismo que nos coloca de “costas voltadas” para Deus. Isto choca, evidentemente, com os, também mostrados neste filme, esforços de controlar, ou pelo menos, gerir as nossas vidas e vermos um sentido (já dado por Deus nas realidades objetivas, e só com Ele encontrado nas subjetivas) para a existência. Um que permite dizer “sim” ao amor.

Podemos ambicionar fortemente algo, mas será isso que o nosso “eu” verdadeiro deseja? Em “Os Fabelmans” as respostas a esta questão são ambíguas, pois nele parece estar distante uma humildade, sem a qual os demais sufocam, e está naturalmente ausente (Spielberg é judeu) um Jesus que, ao contrário da arrogância e da hipocrisia, é aquela Base (que não podemos criar, mas apenas vivenciar) da nossa confiança nas nossas capacidades.

(* EUA, 2022; dirigido por Steven Spielberg; com Gabriel LaBelle, Michelle Williams, Paul Dano e Seth Rogen)