Reflexões sobre o anticlericalismo nacional

Por M. Correia Fernandes

Desde os tempos do Iluminismo que se foi progressivamente instalando na mentalidade portuguesa uma atitude de princípio mental e uma modalidade de escrita a que tradicionalmente se atribui o designativo de anticlericalismo. O conceito vem de trás, até antes da Idade Média, nascido mesmo no seio da Igreja, que tem por expressão a atitude de forças emergentes que se assumiam não só como autónomas mas com claramente oponentes à relevância social da Igreja. Assim nasceram movimentos como a Reforma protestante ou as formas de emancipação do poder político, pela teorização de juristas, pensadores e detentores do poder.

Mas foi o final do séc. XVIII, sob o “impacto da racionalidade científica”(1), na afirmação do Iluminismo e do “século das luzes”, na esteira do ideário da Revolução Francesa, que mais se afirma esta tendência que visa desvirtuar a fé revelada em favor da afirmação dos valores da razão e da ciência, em contraposição aos princípios da Fé. Está ligado à afirmação do antiteísmo que conduz ao ateísmo. E resulta também do conceito e da prática do “despotismo iluminado” que teve entre nós expressão na expulsão dos jesuítas, na abolição das ordens religiosas e nas teorias e organizações maçónicas.

Esta tendência teve a sua expressão na literatura. Podemos lembrar uma figura cimeira da nossa poesia, Bocage (1765-1805), que desferiu sátiras antirreligiosas, de forte conteúdo satírico,  as quais no entanto mais tarde transformou em meditações sobre o sentido  da vida e da morte, do tempo e da eternidade, um discurso de fundo religioso em universo naturalista e cósmico. A força do seu carácter satírico originou a falsa ideia de o associar ao mundo crítico da anedota superficial ou mesmo da sátira brejeira, a que associou em certo tempo a crítica à Igreja institucional, para quem augurava o mesmo destino da perseguição sofrida em França. Ouvindo algum pregador, escreveu uma “Epístola a Marília”, em que verbera o “Dogma funesto, que o remorso arraigas/ Nos ternos corações, e a paz lhe arrancas: / Dogma funesto, detestável crença, Que envenena delícias inocentes!”, e  que contrasta com tantos outros escritos meditativos e conversão e reconciliação, em que “confina a sua poesia de teodiceia e cosmogonia ortodoxa” (1).

Havíamos de chegar depois às diatribes não apenas anticlericais, mas claramente antirreligiosas e blasfemas da Velhice do Padre Eterno de Guerra Junqueiro, onde escreve: “Cultos, religiões, bíblias, dogmas, assombros,/ São como a cinza vã que sepultou Pompéia. /Exumemos a fé desse montão de escombros, /Desentulhemos Deus dessa aluvião de areia”. Mais tarde estes conceitos são por ele rarefeitos pelas meditações naturalistas de Os Simples ou da Oração da Luz.

No século XIX emerge igualmente a visão socialmente anticlerical de O crime do padre Amaro, de Eça de Queiroz (obra praticamente abandonada pelos estudos queirosianos, mas agora ressuscitada, talvez simbolicamente), certamente também inspirada no universo que inundava a mentalidade umam certa mentalidade reinante no seu tempo. Toda a construção romanesca nasce mais da imaginação dos autores que do universo real. O próprio Eça de Queiroz nunca mais voltou ao assunto, e a sua mente andava mais pelas narrativas como o Suave Milagre ou o São Frei Gil do que por este universo transgressor.

Ao longo do século XX esta tonalidade pode encontrar-se em autores do chamado neorrealismo, e depois por exemplo em Aquilino Ribeiro, cuja escrita que bem conhecia do universo eclesiástico perpassa por seus olhos de distanciamento satírico afiado pela palavra tão precisa e original como demolidora.

Deve propor-se uma distinção entre a censura às instituições e a caracterização da religiosidade e da fé. As dúvidas metódicas de um Miguel Torga ou José Régio espraiam-se em escritos meditativos, geralmente de expressão de humildade reverencial, que enfrenta as limitações de uma fé pessoal por um distanciamento ou inquietação espiritual.

O anticlericalismo é o inverso: à incapacidade de uma reflexão distanciada sobre o essencial da fé ou das práticas religiosas, procura escavar ou nos distanciamentos ou no nos erros a raiz de toda a crítica. Constitui o sintoma de uma visão especular das atitudes: projeta-se sobre as convicções ou dramas pessoais do sujeito escrevente.

O anticlericalismo conjuga-se com outro conceito ultimamente muito falado: o laicismo. O anticlericalismo constitui uma hostilidade aberta face ao universo religioso através da sua dimensão clerical, em que pretende discernir e contestar a dimensão da influência na sociedade e nos comportamentos. O laicismo rejeita a influência das Igrejas (sobretudo da Igreja Católica) na esfera pública, considerando, de forma redutora e psicologicamente inconsequente, que os assuntos religiosos devem cingir-se à esfera privada de cada pessoa. Esta é uma postura ao mesmo tempo de incompreensão de conceitos e de imposição social, através de um silenciamento forçado. É mesmo significativo que se afirme que se devia também dar o mesmo benefício a outras religiões, que portanto se tornariam também laicas.

Importa redefinir o essencial: a nossa sociedade deve respeitar o laicismo, mas não impor o laicismo. A laicidade possui a característica do respeito por todos os entendimentos, senão não é laicidade, mas prepotência.

O elemento social anticlerical emergiu em força nos últimos dias, a propósito da construção do altar para a Jornada Mundial da Juventude. Para além da questão dos custos, considerados excessivos e injustificados, esqueceu-se toda a dimensão humana, social e cultural, toda a dinâmica da mensagem de convivência e de fraternidade, todo o espírito da paz. Ninguém se lembrou de confrontar tal custo com o custo de jogadores de futebol adquiridos ou vendidos  por dezenas de vezes mais ou os custos de concertos ou digressões de figuras mediáticas.

Os comentários que têm sido produzidos sobre o evento da Jornada Mundial da Juventude rondam a incompreensão assumida, o exagero inconsequente, a sátira e o sarcasmo especular. Todos se revelam no que se afirma e mais ainda o que se escreve. É um fenómeno preocupante, humana e socialmente.

O anticlericalismo não é um vício do passado mas uma expressão críptica do presente.

(1) José Carlos Seabra Pereira, As Literaturas em Língua Portuguesa, Gradiva, 2019