O Cinema visto pela Teologia (54): filme “Causeway”

Uma leitura do filme “Causeway*​​

Por Alexandre Freire Duarte

Esta ponte – causeway – não é uma para se passar por cima dos problemas, mas através deles, como Jesus e os que são chamados a seguirem-No. Devo admitir que não há nada de original na história deste deliberadamente lento filme dramático e verboso, mas a sua lentidão torna-se, ela mesma, uma personagem, sem magnetismo e perfeitamente reservada. Uma que se conjuga, de um modo delicado e nuançadamente consistente, com a (gentil, mas vibrante) interação admirável dos papeis das duas personagens principais, cada uma a tentar sair, lentamente, de passados traumáticos.

Além disto, o uso pausado das câmaras a dar tempo para as personagens expressarem os sentimentos mais corporalmente do que por palavras; as conversas que, em termos gerais, parecem absolutamente reais; e, enfim, o registo intimista, mas não devassador, antes cheio de honestidade, genuinidade e normalidade (talvez, às vezes, demasiado atravessada e subtil), fazem com que este filme, inteiramente situado apenas a um nível humanista, tenha, algures, uma “mudança” escondida para poder ir mais longe.

A teologia é muito atenta ao facto de que, como sabemos, as recuperações de um estado debilidade (sejam estes quais forem) são custosas, frustrantes e até dolorosas. Mas sabemos que vamos passar por elas, inclusive quando (contra todas as espectativas e no que gera penas emocionais em cadeia) aqueles com quem mais contaríamos se mostram indiferentes e, até, hostis. Nestes casos, a “vida” com os “nossos” parece ser mais infernal do que os diversos “infernos” que nos causaram essas debilidades.

Todas as recuperações são delicadas e espinhosas, mas também sabemos que há possíveis saídas para elas, nos diversos “céus” que, inesperada e até atrapalhadamente, chegam até nós. Estejamos apenas atentos a eles para reconhecermos, com o mínimo de “ângulos cegos”, aquilo de que precisamos para nos restabelecer. Desse modo, o símbolo da água – tão presente nesta obra e que no Cristianismo recorda a passagem (de Jesus e do batizando) da morte para a ressurreição – não poderia ser mais adequado como sinal de uma nova e decidida oportunidade, quiçá nem sempre tranquila.

Saídas que, depois, se tornam saberes espirituais para auxiliarmos quem está a viver o que vivemos. Ninguém sabe perdoar se não foi perdoado; ninguém sabe ajudar, sem ter sido ajudado. Felizmente que nós somos, quanto à natureza humana, iguais em tudo a Jesus, exceto no facto de pecarmos. Ele, e os demais que havendo padecido vivem ligados a Ele, são os polos de conexão e de amizade de que necessitamos. Não a recusemos, assim, a ninguém: persistamos face às nossas feridas e auxiliemos os demais a saírem, com alento, das suas feridas e a reentrarem na realidade diária possível.

Sim: ajudarmos os demais é uma das mais fortes razões para sairmos dos aterros em que, com dor e talvez inclusive rancor, nos poderemos encontrar, mas apenas se não manipularmos esses demais. Eles não são meios para a nossa cura, eles são a nossa cura. Mais: no Senhor (e nos diversos meios por Ele cedidos em Igreja), eles serão das vias mais seguras para da (auto-)culpa pelo que sucedeu, passarmos pela recuperação e aceitarmos a redenção. E o que é verdade a um nível meramente humanista, como ocorre neste filme, também pode ser dito, com maioria de razão, na esfera espiritual cristã.

(* EUA, 2022; dirigido por Lila Neugebauer; com Jennifer Lawrence, Brian Tyree Henry; Linda Emond, Jayne Houdyshell e Stephen McKinley Henderson)