O itinerário paulino do Papa Francisco

Por Jorge Teixeira da Cunha 

A recente viagem do Papa Francisco à República Democrática do Congo e ao Sudão do Sul faz-nos lembrar um livro antigo de Lucien Cerfaux que falava do itinerário espiritual de S. Paulo. Como no Apóstolo das Gentes, há em Francisco um impulso irreprimível para ir mais longe na proclamação do Evangelho e na implantação da comunidade da abertura fraterna ao Reino. Isso é especialmente importante nos dias de hoje em que a Igreja tem dificuldade em se legitimar como comunidade messiânica, deixando-se facilmente enredar em intrigas mundanas e tendo pouca capacidade para se elevar acima do ruído provocado pelos pecados dos seus membros. Quais seriam então os aspectos em que Francisco mostra o seu ardor paulino, no meio dos atavismos institucionais que manietam a Igreja de hoje?

O primeiro aspecto que nos parece “paulino” em Francisco é a fundação carismática do seu estilo pastoral. Vindo dos confins do derradeiro dos Continentes cristãos, sempre se deu mal com os mecanismos institucionais da Cúria Romana e sempre lhe assentaram mal os atavios do modo papal de se apresentar. Nem mora no Palácio, nem calça os sapatos da conhecida marca que costumavam calçar os seus antecessores. Segue o seu caminho, sem o guião que era tradicionalmente imposto aos que o precederam no cargo. Elege para os seus textos aquilo que lhe parece mais urgente, não se coíbe de olhar para o que pensam os críticos do cristianismo, não parece dar a ler as suas encíclicas aos teólogos da Casa Pontifícia. Clama, exorta oportuna e importunamente, a favor do que lhe parece decisivo e contra aquilo que lhe parece intolerável. Identifica com coragem o que lhe parece ser o mais urgente para o futuro da humanidade e mete ombros às suas tarefas apostólicas sem olhar à limitação da sua velhice. Aparentemente, um grande desejo o move e esse desejo dá força ao seu carácter para ir adiante, numa idade em que quase todos já teriam desmobilizado.

O segundo aspecto que nos parece “paulino” é a convicção de que o Evangelho não é uma cosmética num mundo já feito, mas é uma ética do advento da face definitiva da realidade. Nesta viagem ao coração turbulento do continente africano, esta sua convicção fica patente quando proclama, alto e bom som, que é preciso tirar a mão de África para poder dar a mão a África. Trata-se de denunciar a relação de domínio violento sobre territórios riquíssimos de matérias-primas indispensáveis para a nossa comodidade tecnológica, para incluir os povos africanos na rede mundial do comércio justo. A África é, a quanto parece, um continente esgotado, por ter sido o mais antigo lugar de origem da humanidade, muito embora essa antiga cultura muito ainda tenha a dar ao humanismo mundial. Mas como nunca foi uma civilização tecnológica, tem os seus recursos minerais ainda intocados e, daí a cobiça a que está sujeita. Era natural que Francisco, depois de publicar uma encíclica sobre a Amazónia, se voltasse também para os outros lugares problemáticos da cintura verde do Planeta. A África pode dar ao mundo a sua fé em Deus, a sua solidariedade entre os viventes. O cristianismo pode dar-lhe o sentimento de Deus, como rosto de bondade, e o sentido da dignidade individual do ser humano, irredutível à sua diluição na família e na comunidade.

O terceiro modo “paulino” de evangelizar de Francisco está na credibilidade da sua mística de proximidade a Deus e ao ser humano na indigência do seu rosto desarmado. Nesta sua viagem ao Sudão do Sul, foi especialmente comovente a sua defesa da dignidade feminina, das crianças vítimas dos conflitos bélicos, a terra explorada ela mineração desenfreada. Em todas estas acentuações de evidente pertinência, a palavra do Papa recebe uma credibilidade que vem do seu modo pessoal de olhar as pessoas dos contextos problemáticos de pobreza e de exploração. Este ponto é tanto mais importante, quanto a Igreja institucional se encontra um tanto desprovida de autoridade para pregar moral e denunciar os pecados alheios.

Muitos apontam debilidades ao ministério do Papa Francisco. Talvez tenham alguma razão. Mas uma coisa parece indiscutível: o actual Papa vê reconhecida pelas multidões uma aura pessoal que representa o maior valor d Igreja de hoje a braços com tantos defeitos e tantos pecados.