
Uma leitura do filme “Decisão de Partir” *
Por Alexandre Freire Duarte
Já não é a primeira vez que trago até esta rubrica um filme Sul-Coreano. Outrora já apresentei “Parasitas”, por ter ganho o Óscar de melhor filme há três anos. Desta vez faço-o por termos tido um mês de dezembro assaz pobre em filmes meteóricos, mas este “Decisão de Partir” é uma exceção. Não por isto, nem por aquilo, mas por tudo o que é o cinema, em especial o mais atrativo e fascinante, roçando as nossas vidas de lados inimagináveis.
“Decisão de Partir” é uma bela e comovente e sensual história de paixão – e de amor – embrulhada numa sombria e melancólica trama de mistério, intriga e suspense. Wei e Hae-il são deslumbrantes nos seus multifacetados papeis e a sua complexa e obscura relação, apresentada tantas vezes com grandes planos das suas faces, é o centro desta obra; a fotografia, com paisagens luxuriantes, e o criativo trabalho de câmaras não podiam ser melhores; a música acompanha, com precisão, toda uma narrativa emocionalmente forte que, no fundo, segue o estratagema de ser como o virar um lenço do avesso. Mas não de repente, mas lenta, continuamente e sem estagnar, também pelas ocasiões de humor nonsense que sugere e, mormente, por um fim aberto que obriga a vertermos o visto para as nossas vidas.
Das mais difíceis realidades que, como teólogo, tenho tido é a de explicar a diferença entre paixão e amor. Apesar de distintos – a paixão é cega e facilmente presa de “parceiros fatais”, enquanto o amor é lúcido e leva tudo à razão antes de uma decisão –, andam às vezes conectados. Assim, na mente de muitas pessoas, confundem-se, por vezes com desfechos calamitosos. Mas quando surge o, ou a paixão dá lugar ao, amor (essa luminosa doação interdadivosa do próprio Deus que é Amor), as pessoas, se tal amor for genuíno, mudam e abrem-se ao outro e ao Outro. O amor é o verdadeiro “algodão”: não engana, sobretudo se, como vemos neste filme visto do seu pungente ápice final, está cheio de perdão e sacrifício.
A paixão cega. Já o disse. Faz-nos (alerta-nos a teologia cristã desde há pelo menos 1700 anos) viver na sombra, com os olhos ofuscados e, por mais que nos encha de adrenalina, arruína-nos. Leva-nos a cometer erros ao confundirmos a realidade com o sonho e a atravessarmos linhas que, de outra forma, nem sequer calcaríamos, por sabermos que seriam a expressão de razões emocionalmente irracionais. Eis-nos, desta forma. perdidos num labirinto, do qual só se sai por um desejo ardente de vivermos e querermos a realidade.
Já o amor vive de olhos bem abertos, buscando aferir o “bem verdadeiro” do “verdadeiro eu” de quem amamos e, depois, fazê-lo. Mesmo quando, como nesta obra, se debate como fazer a sua relação funcionar, o amor abre, de modo recontextualizante, o leque de leituras de um real que, embora objetivo, pode, na perceção que dele temos, depender muito de “onde estamos” e de “para onde queremos ir”. Dispensando grandemente palavras, mas carecendo abismalmente de ações, o amor, provindo de Deus, não faz o pecado impossível, mas torna-o, se formos sensíveis ao Espírito, muito doloroso. As leis morais seriam, assim, dispensáveis, se vivêssemos uma vida em que o amor fosse a nossa linguagem.
(* Coreia do Sul, 2022; dirigido por Park Chan-wook; com Tang Wei, Park Hae-il e Lee Jung-hyuna)