A sabedoria redescoberta  dos filmes de Manoel de Oliveira

Por M. Correia Fernandes

Tem por título “Espelhos Mágicos – a Filmosofia em Manoel de Oliveira” um novo livro de António Roma Torres, publicado em Dezembro de 2022 (portanto há pouco mais de um mês) pelas edições Afrontamento, no Porto.

Analisemos o buscado neologismo Filmosofia. Filmografia é termo corrente, designando o conjunto das obras de um autor (ou, entre outras naturais dimensões, os filmes de uma produtora, de uma época, de um país ou de um tempo ou de uma instituição, ou em sentido global qualquer conjunto de obras fílmicas).

Por outro lado, Filosofia tem as conhecidas componentes de filo-, amor por, ligação afetiva ou orientada e sofia, a forma atualizada do grego Sophia, a verbalização de uma das mais importante dimensões humanas, a Sabedoria, conceito do pensamento helénico e do pensamento bíblico, dando origem ao conjunto de livros a que foi dado o nome de sapienciais.

Agora que alguém se lembra de associar sabedoria a um universo de obras fílmicas, o neologismo filmosofia constitui a expressão verbal dum vislumbre simbólico do autor do livro. Lembra inopinadamente que nos filmes de Oliveira perpassam as múltiplas dimensões da Sabedoria dos homens e dos tempos. É essa a grande descoberta.

Com efeito. O que podemos encontrar nos filmes de Oliveira não é nem o drama, nem a perfeição da narrativa, nem o fluir natural dos acontecimentos. Encontramos certamente a originalidade da construção da imagem e da montagem, da relação entre o real e a ficção, a meditação sobre a condição humana. Podíamos mesmo, à maneira do autor, sugerir uma FilmoTeologia nos filmes de Oliveira.

O ter neles discernido e analisado ontológica e criticamente a exponenciação fílmica do pensamento e da sophia, grega, bíblica e de todo o pensamento humano constitui uma originalidade da visão pelos olhos do comentarista que, à maneira do poema de Gedeão, pelos  seus olhos uns vê escolhos (ou sabedoria, ou pensamento)/ onde outros com outros olhos/não veem  escolhos (ou pensamentos)  nenhuns…

É esta capacidade de leitura que encontramos no presente livro.

O autor

António Roma Torres foi colaborador da Voz Portucalense durante muitos anos (o que recorda na Introdução). Atrevo-me a afirmar que foi nestas páginas que iniciou a tarefa que desenvolveu posteriormente, de forma lúcida e exuberante, em órgãos de comunicação social mais envolventes, como pode ser o Jornal de Notícias ou mais recentemente o Público, passando no meio pela publicação de livros, como aquele em que, nos anos 70 do século XX, evidenciou o nascimento de uma nova linha temática e narrativa  do cinema em Portugal, através da publicação do volume Cinema português, Ano Gulbenkian (1972), onde surgia um estudo sobre o filme de Oliveira O Passado e o Presente. Uma raiz distante desta Filmosofia poderá encontrar-se já no livro Cinema, Arte  e Ideologia, publicado em 1975. Aqui nos deparávamos com a filmosofia não apenas de Manoel de Oliveira, mas do próprio Roma Torres.

Médico com a especialidade de Psiquiatria, diretor daquele Serviço hospitalar, ao longo de 10 anos, introduziu entre nós o estudo e a prática do psicodrama e da terapia familiar sistémica. Revelou recentemente outra dimensão da sua criatividade, publicando obras de teatro, em que pesquisa nos acontecimentos a sua dimensão psíquica ou psiquiátrica, quer na história (Cícero e César, o Rei da Áustria), quer na tradição (O problema humano de José e Maria no drama José Ajudado).

O livro agora apresentado parte do conceito de “espelhos mágicos” (fórmula plural de um dos seus filmes, de 2005) e constitui o refazer de um universo de vidente do cinema pelos olhos do psiquiatra ou do analista social, ou do estudioso da condição humana. Estes espelhos permitem ver a obra (imagem, palavra, música) pelos olhos do autor e conhecer o autor pela visão da sua obra, desenvolvida ao longo de 73 anos (de 1931 a 2014).

A justificação do título desenvolve-se no último capítulo do livro, “Oliveira e os espelhos”. Ali referencia as influências que escudaram a construção da obra de Oliveira, inspirada nos mestres  criadores do cinema como Dziga Vertov ou Sergei Eisenstein, até às leituras dos grandes clássicos da literatura portuguesa (José Régio, Camilo Castelo Branco, António Vieira, Agustina de Bessa-Luís, Raul Brandão, ou menos conhecidos como Vicente Sanches, Prista Monteiro, ou aos clássicos franceses como Paul Claudel.

Personagens ao espelho

O autor estuda a posture cinematográfica de Oliveira em que o elemento especular se manifesta nas personagens que “se desdobram num espelho caleidoscópio”, e na correspondência com outros autores consagrados como Antonioni, Wim Wenders, Buñuel. Nos últimos filmes Oliveira recorreu também, na esteira do seu prestígio cada vez mais reconhecido internacionalmente pela originalidade da sua obra, a actores consagrados, como Marcelo Mastroiani, John Malkovich, Catherine Deneuve, Irene Papas, que vieram fazer companhia a Luís Miguel Cintra e Leonor Silveira, seus actores preferidos.

O percurso deste volume encontra-se dividido e duas pastes: a primeira constitui uma revisitação do desenvolvimento do cinema português, que desemboca numa visão simbólica, a “mão de seis dedos” a que se poderia reduzir o “cinema lusíada”, proposta que “mais que uma fantasia ou deformidade, pode configurar um acréscimo, um potencial”.

Os restantes nove capítulos constituem um percurso da obra do Oliveira segundo vários parâmetros de observação: A imagem, a palavra, a música, o som, o Oliveira essencial, o cinema lusíada, o cinema e texto, memórias e confissões, terminando com a referida construção dos “espelhos”. Por este universo passam todos os filmes de Oliveira que, de 1931 a 2014, somam 54, geralmente um por ano (excepto os criados em 64 (dois), em 85 (dois), em 96 (dois),  em 2001 (dois), em 2002 (três),  em 2005 (dois), em 2006 (dois), em 2008 (dois) e em 2009 (dois).

O cinema de Oliveira é essencialmente cinema de palavra – proposta e diálogo. Mas a música desempenha também o seu papel, como mostram alguns dos intérpretes intervenientes (João Paes, compositor (filme Os Canibais), Maria João Pires, pianista, ou José de Oliveira Lopes, barítono).

Por aqui contactamos com uma obra de ampla e rigorosa informação, a mais completa que até agora se escreveu sobre o trabalho criativo de Manoel de Oliveira. Foi publicamente revelada em Serralves (Porto), na Casa do Cinema Manoel de Oliveira, com a apresentação de Regina Guimarães, poeta, do editor José Ribeiro (Ed. Afrontamento) e pelo Diretor da Casa, António Preto.