
Por Secretariado Diocesano da Liturgia
Muito antes de ser eleito para a cátedra de Pedro, já Joseph Ratzinger estava atento ao processo nunca linear de receção da reforma litúrgica decretada pelo Concílio e posta em ato por São Paulo VI e São João Paulo II. Podemos tomar como referência dois livros-entrevista publicados, respetivamente, em 1985 (Rapporto sulla fede) e em 1996 (O Sal da Terra). Neles emergem preocupações e críticas decorrentes do seu alto conceito de Liturgia e que aqui recapitulamos.
O proprium da Liturgia não deriva daquilo que nós fazemos, mas do facto de que nela acontece Algo, opera uma força, um poder que nem sequer a Igreja inteira se pode conferir. Urge, por isso, reencontrar o «carácter predeterminado, não arbitrário, imperturbável, impassível do culto litúrgico» (Rapporto, 130). A liturgia não vive de surpresas “simpáticas”, de achados “cativantes”, mas de repetições solenes. Não deve exprimir a atualidade e o seu efémero, mas o mistério do Sagrado (Ibidem). «É preciso que volte a ser claro que a ciência da liturgia não existe para produzir constantemente novos modelos, como poderá ser próprio da indústria automóvel. […] No que respeita a esta questão, não se devia apenas aprender da Igreja oriental, mas de todas as religiões de todo o mundo, que sabem todas que a liturgia é algo diferente da invenção de textos e ritos, porque vive, precisamente, do que não é manipulável» (Sal da terra, 138).
Consequentemente, há que superar o neoclericalismo de celebrantes que se comportam como os «donos» da Liturgia da Igreja, dispondo dela e manipulando-a a seu bel-prazer. Há que libertar a Liturgia do turbilhão do “faz por ti mesmo” que a banaliza e rebaixa à nossa medíocre medida (Rapporto, 130s). «A liturgia não é um show, um espetáculo que necessite de diretores geniais e de atores de talento» (Ibidem). O padre não é nenhum showmaster que hoje inventa algo e transmite com habilidade. Pelo contrário, compete-lhe representar algo que não depende dele mesmo (Sal da Terra, 137). Notemos, de passagem, a coincidência desta perspetiva com a que o Papa Francisco apresenta em Desiderio desideravi, nomeadamente ao falar da «arte de celebrar» que deverá decorrer de uma autêntica formação litúrgica.
Ratzinger questionava também uma visão parcial e redutora da «participação ativa» que redundava em ativismo e se confinava num exteriorismo perigosamente vazio. Importa reter que a «participação ativa» é um real corolário do reto conceito de Liturgia que implica actio, ação. «Surgiu a impressão de que só se tinha uma “participação ativa” onde houvesse uma atividade exterior verificável:
discursos, palavras, cantos, homilias, leituras, apertos de mão… Mas esqueceu-se que o Concílio põe na actuosa participatio também o silêncio, que permite uma participação verdadeiramente profunda, pessoal, concedendo-nos a escuta interior da Palavra do Senhor» (Rapporto, 131). Perceber com o espírito e com os sentidos também é «participar». E há muito de «atividade» no escutar, no intuir e no comover-se. Reduzir o homem à mera expressão oral é apequená-lo (Ibid. 132).
A Liturgia não pode abdicar da inteligibilidade e da inteligência. Entretanto, esta não se esgota na esfera do racional, do discursivo. «Claro que a inteligibilidade também faz parte da liturgia, e, por isso, a palavra de Deus deve ser bem lida, em voz alta, e depois deve ser bem interpretada e explicada. Mas juntam-se à inteligibilidade da palavra outros modos de compreender» (Sal da terra, 137). «A experiência mostrou como o alinhamento exclusivo sobre a categoria do “compreensível a todos” não tornou as liturgias verdadeiramente mais compreensíveis, mais abertas, mas somente mais pobres. Liturgia “simples” não significa miserável ou barata: há a simplicidade que vem do banal e a que deriva da riqueza espiritual, cultural, histórica» (Rapporto, 132). «Os centros em que a liturgia é celebrada sem fantasias e com reverência, atraem, mesmo que não se compreendam todas as palavras» (Sal da Terra, 138).
É assustador o empobrecimento que se manifesta onde quer que se expulse a beleza para apenas reter o útil. E isso aconteceu, particularmente no domínio da música sacra que foi posta de lado – de forma precipitada e contra a vontade da Igreja – sendo substituída quase exclusivamente por «música de uso», «música de consumo»: «cançonetas, melodias fáceis, coisas correntes» (Rapporto, 132). Os factos demonstram que o abandono da beleza redundou em motivo de derrota pastoral.