O Cinema visto pela Teologia (52): “A rapariga tranquila”

Uma leitura do filme “A Rapariga Tranquila*

Por Alexandre Freire Duarte

Em busca de conselho para algo de delicado que vivo, pedi, há uma semana, para me encontrar com o meu antigo superior dos tempos em que vivi em Madrid. Mérida é, de facto, perto de Portugal (embora não do Porto), e foi lá que me dirigi. Ao jantar, no dia da chegada, ele perguntou-me se já vira um filme com um nome gaélico incompreensível. Disse “não”. Nem acabámos o jantar. Ainda bem. O que acabei por ver foi absolutamente lindo. Sublime.

Pode parecer exagero, mas não é. Tudo neste filme é uma pérola infinitamente perfeita. A direção é brilhante, delicada, bela e pede emprestado, de modo oblíquo, o estilo dos filmes de fantasmas para mostrar que estes estão no nosso egoísmo; as três figuras principais são excecionais (cada uma no seu subtil papel cônsono), sobretudo a estupenda estreante Clinch, que consegue dizer-nos tudo num silêncio prenhe de sentimentos e por gestos intimistas entrecortados, que convidam à emoção natural sem se cair no barato e balofo emocionalismo comercial; por seu lado, o ritmo leva à contemplação atenta e permite que conheçamos as personagens com familiaridade e naturalidade, a fotografia nostálgica é genial e a música é a “cereja no topo”. Repito-me: numa imaginei ver um filme tão perfeito e gracioso como este.

Três temas são teologicamente fundamentais. O primeiro é o de como o tratamento parental que uma pessoa recebe no seu crescimento pode marcar tremendamente o que ela será, sobretudo na adolescência e juventude. Eis o motivo de Jesus pedir que não se escandalizem os mais pequenos, também através do não se ser compreendido, nem estimado, por aqueles que (por mais que o educar seja difícil) mais os deviam amar, cuidar e proteger com empatia e compaixão. Eis porque, tristemente, há quem prefira a escola à sua casa, pois naquela é-lhe reconhecida uma importância e um valor que, em casa, não lhe sabem dar.

O segundo tema é o do luto. Há silêncios que brotam de uma alma em paz, mas há outros que surgem de uma alma ferida, devido a um passado ainda não resolvido, sobretudo se um sempre “viscoso” sentimento de culpa está no cerne dessa não-resolução. Sim: tudo pode ser comunicado sem palavras – que o digam os esposos –, mas também há a afonia que decorre de se ver como um fardo, um afetado e um monstro, pelas perdas sucessivas que ocorreram na sua vida. Como alguém que, assim, precisa de andar (meio) oculto no meio das “ervas” da vida, para não escorregar e ver-se, e dar-se a ver, como um tristíssimo vácuo. Mas o amor (re)encontrado, num ápice ou de forma mais duradoira, pode mudar tudo para sempre.

O terceiro, por fim, é o da celebração da simples e descomplexa bondade humana, posta nos silêncios silenciosos e tranquilos, nos mais pequenos gestos de ternura e nas mais pequenas palavras de amor – e devo admitir que, por ser pai numa fase (também paterna) difícil da minha vida, nunca chorei ao ver um filme como quando, quase no fim deste, ouvi uma mesma palavra ser dita em dois momentos, separados por segundos e com riquezas tonais abismalmente diferentes: “papá”. Nunca o carinho e o amor se perdem, e juntos e no Espírito, fazem mover as estrelas e os corações, que, no fundo, são as “estrelas” de Deus.

Nunca o disse antes, mas digo-o desta vez: podendo, vejam, por favor, esta obra-prima.

(* Irlanda, 2022; dirigido por Colm Bairéad; com Catherine Clinch, Carrie Crowley e Andrew Bennett)