
Por Secretariado Diocesano da Liturgia
A Igreja universal, confiada pelo Senhor, durante oito anos, às mãos (inteligência, coração…) e cuidados de Bento XVI entregou por sua vez nas mãos do Pai este seu fiel servidor. Em hora de tantos balanços sobre o seu ministério, não podemos esquecer que a Liturgia é o vértice e a fonte de toda a vida e missão da Igreja e, consequentemente, teve um lugar cimeiro e fontal na vida e missão deste humilde e generoso trabalhador da Vinha do Senhor.
A estatura do homem e o volume da obra, não permitem uma síntese que se acomode no espaço deste fundo de página de VP, mesmo que desdobrado em várias semanas. Como é óbvio, queremos abraçar todo o arco do seu serviço eclesial, sobretudo desde o início do II Concílio do Vaticano com o qual colaborou como teólogo perito, passando pelos anos do seu ministério episcopal em Munique (1977-1981) e do seu serviço «petrino», primeiro como colaborador de São João Paulo II à frente da Congregação da Doutrina da Fé (1981-2005) e, depois, como seu sucessor na sede de Pedro (2005-2013).
Bento XVI (Joseph Ratzinger) foi um notável teólogo da Liturgia. No plano editorial das suas «Opera Omnia» [Obras Completas], o tema Liturgia ocupa 2 dos 16 volumes: o 11º sobre a Teologia da Liturgia (significativamente foi o primeiro a ser publicado pela Libreria Editrice Vaticana) e o 14º com homilias e pregações para o ano litúrgico. E está igualmente presente no 13º dedicado a entrevistas e tomadas de posição «Em colóquio com o seu tempo». Lembremos também que o então cardeal Ratzinger coordenou a equipa redatorial do Catecismo da Igreja Católica – não é obra dele mas tem indelevelmente a sua marca – que na sua segunda parte nos proporciona uma visão iluminada e empolgante da imensa bênção divina que é a Liturgia da Igreja e, nela, os seus Sacramentos.
Para uma recapitulação sumária, sugerimos a releitura da alocução em tom familiar com que ele se despediu do clero de Roma, em 14 de fevereiro de 2013: «uma breve conversa (o «improviso» demorou cerca de 1 hora) sobre o Concílio Vaticano II, tal como eu [ele] o vi». Ora o primeiro grande assunto do Concílio foi a Liturgia. Era necessário que «a liturgia do altar e a liturgia do povo fosse uma única liturgia… e assim foi redescoberta, renovada a liturgia». – Eis justificada a reforma litúrgica que Bento XVI/Ratzinger nunca questionou em si mesma, embora criticando modalidades da sua implementação.
«Foi muito bom ter começado pela liturgia, aparecendo assim o primado de Deus, o primado da adoração». Entre as ideias essenciais da Constituição Sacrosanctum Concilium, Bento XVI valorizou o mistério pascal, centro da Liturgia e da vida cristã e, ainda, a inteligibilidade e a participação. A inteligibilidade, porém, não é banalidade; requer formação permanente do coração e da mente. Por sua vez, a participação não se reduz a atividade exterior, mas implica uma entrada de cada pessoa na comunhão da Igreja e, assim, na comunhão com Cristo. De grande importância, é também a Eucaristia – celebrada e comungada – para a elaboração do conceito de comunhão que se torna a chave da eclesiologia conciliar, ligando a perspetiva do Corpo de Cristo com a de Povo de Deus.
Nesta síntese de despedida, Bento XVI alertou para a divergência entre o Concílio dos Bispos – «um Concílio da fé que faz apelo ao intellectus, que procura compreender-se e procura entender os sinais de Deus naquele momento» – e o Concílio dos meios de comunicação social com a sua hermenêutica política que tudo reduzia a jogos de poder. No âmbito da Liturgia, esta visão ideológica condicionou significativamente a aplicação da reforma litúrgica: «não interessava a liturgia como ato da fé, mas como algo onde se fazem coisas compreensíveis, algo de atividade da comunidade, algo profano». A par dessa redução coloca-se a perda da sacralidade do culto que acaba por se reduzir a mero agir da comunidade celebrante. «Estas traduções, banalizações da ideia do Concílio, foram virulentas na prática da aplicação da reforma litúrgica; nasceram numa visão do Concílio fora da sua chave própria de interpretação, da fé».
Concluindo o seu balanço, Bento XVI reconhecia que o Concílio dos meios de comunicação, acessível a todos, acabou por prevalecer e, daí, entre outras consequências negativas, a liturgia banalizada a que chegamos… «O Concílio virtual era mais forte que o Concílio real». «Parece-me que, passados cinquenta anos do Concílio, vemos como este Concílio virtual se desfaz em pedaços e desaparece, enquanto se afirma o verdadeiro Concílio com toda a sua força espiritual. E é nossa missão … trabalhar para que o verdadeiro Concílio, com a própria força do Espírito Santo, se torne realidade e seja realmente renovada a Igreja».