
Por M. Correia Fernandes
Fiquei, ficamos todos surpreendidos, os que leem ao menos os títulos, com a afirmação plasmada na primeira página do Jornal de Notícias de 26 de dezembro de 2026, o dia seguinte ao Natal: “Número de ricos cresce cinco vezes nos últimos anos”. O contraste é evidente com os acontecimentos lembrados na Liturgia e na tradição da Igreja Católica e das Igrejas cristãs, e do conhecimento de toda a história do mundo ocidental nesses dias lembrado: basta referir o estábulo do nascimento e os pastores que acorreram na sua dureza e simplicidade de vida. Quem seriam os ricos desse tempo?
A primeira ideia que me veio à mente foi a afirmação, das tantas vezes comentadas Viagens na Minha Terra de Almeida Garrett, que em 1846 escrevia nesse livro cheio de originalidade literária nos parâmetros da época, onde a cultura literária se mistura com a análise social e política, proposta com uma ironia amarga: “Reduzi tudo a cifras, todas as considerações deste mundo a equações de interesse corporal, comprai, vendei, agiotai. No fim de tudo isto, o que lucrou a espécie humana? Que há mais umas poucas dúzias de homens ricos. E eu pergunto aos economistas políticos, aos moralistas, se já calcularam o número de indivíduos que é forçoso condenar a miséria, ao trabalho desproporcionado, à desmoralização, à infâmia, à ignorância crapulosa, à desgraça invencível, à penúria absoluta, para produzir um rico? — Que lho digam no Parlamento inglês, onde, depois de tantas comissões de inquérito, já devia andar orçado o número de almas que é preciso vender ao diabo, número de corpos que se tem de entregar antes do tempo ao cemitério para fazer um tecelão rico e fidalgo como Sir Roberto Peel, um mineiro, um banqueiro, um granjeeiro, seja o que for: cada homem rico, abastado, custa centos de infelizes, de miseráveis. Logo a nação mais feliz, não é a mais rica. Logo o princípio utilitário não é a mamona da injustiça e da reprovação” (Cap. 3º).
O tema desenvolvido nas páginas seguintes do diário JN apresentava os seguintes números: “O Fisco segue 4923 grandes fortunas” e “Há 685 contribuintes que declaram rendimentos acima de 750 mil euros”, e fundamentava-se em números e gráficos extraídos de dados oficiais do “Relatório sobre o combate à fraude e evasão fiscais e aduaneira no ano de 2021”.
E tudo isto podemos compaginar com as parangonas informativas dos últimos dias (de favores, benefícios, comissões, demissões e mesmo com o inopinado questionário imposto para se ser ministro) e com as discussões cheias de tudo (informações, leituras por prismas diversos, agressões verbais, conflitos ideológicos e de interesses) que se debatem nos sábios e insidiosos debates na Assembleia).
E a pobreza?
Outra consulta de dados que importa realizar e confrontar com o dado anterior é, por exemplo a percentagem de pobres em Portugal, cujo número foi referenciado no debate de 11 de janeiro de 2023 na Assembleia da República, por leituras não coincidentes dos mesmos dados. Aí se referenciaram números diferentes segundo o prisma do olhar de cada deputado ou organização politica, em que se apresentaram números desencontrados.
Sabe-se que há uma Estratégia Nacional de Combate à Pobreza (ENCP) 2021-2030, lançada em 2021, com vigência até 2030, para cuja coordenação o Governo escolheu recentemente Sandra Araújo. Na definição das suas intenções afirma-se que “a Estratégia constitui um elemento central do objetivo de erradicação da pobreza, enquadrado no desafio estratégico de redução das desigualdades em Portugal”.
Os números da pobreza em Portugal são muito variáveis, de acordo com critérios que os definem. O critério genérico “Consideram-se em situação de pobreza todos os indivíduos e famílias cuja escassez de recursos os prive de um mínimo de vida aceitável na sociedade em que vivem” abarca situações muito diferenciadas, em função de situações concretas: a pobreza de um habitante de uma freguesia campestre, que não dispõe de um vencimento fixo mas em que, pelo seu trabalho árduo obtém das culturas que faz a alimentação essencial é diferente do habitante de uma cidade que não tenha possibilidade de adquirir os alimentos e os bens essenciais. A pobreza de um desempregado é diferente da pobreza de um trabalhador mal pago.
Situações diferentes são também a exclusão social em confronto com quem possa dispor da sua habitação familiar, mesmo que de condições precárias, o drama dos sem-abrigo ou dos trabalhadores mal pagos e marginalizados.
Pôde ouvir-se na Assembleia da República que havia em Portugal quatro milhões de pobres, quarenta por cento da população, quando outos números falam menos drasticamente de cerca de 20 por cento da população.
Os números dependem dos critérios da definição. Podemos considerar valores absolutos e valores relativos, números reais e percentagens (critério que agora está na moda). Segundo o Instituto nacional de Estatística, em 2020 era de 19,8% a proporção da população residente em risco de pobreza ou exclusão social, considerando “limiar do risco de pobreza” o rendimento anual de 6.653 euros.
A Rede Europeia Anti-Pobreza (EAPN), a que em Portugal tem vindo a presidir o Padre Agostinho Jardim Moreira, que tem vindo a lançar programas que procuram obviar às situações e aos dramas da pobreza, afirma: “A luta contra a pobreza e a exclusão social deve ser assumida por todos os atores sociais, desde a sociedade civil, passando pelos órgãos de decisão política de nível local, regional e nacional. Neste contexto, podem associar-se à EAPN Portugal as pessoas singulares ou coletivas que se identifiquem com a sua missão e se proponham contribuir para os seus objetivos. A base associativa distribui-se pelas seguintes categorias: Associados individuais, Associados coletivos, Associados honorários e Associados por inerência”.
As ações concretas passam pela atuação dos poderes públicos. Porém importa reconhecer que têm vindo a ser a instituições particulares da solidariedade social, como a Caritas, as Conferências Vicentinas, as instituições de solidariedade, nem sempre reconhecidas pelos poderes públicos, que têm vindo a tornar-se os grandes agentes da luta concreta contra a pobreza.
Lembramos as palavras do presidente da Direção da Rede Europeia em Portugal, com data de Outubro de 2022: “ Para superar esta crise precisamos de reorientar a nossa atuação a todos os níveis: a nível pessoal, a nível económico, a nível político, a nível moral. Precisaremos de tempo para refletir sobre estas mudanças necessárias e precisamos apostar na educação como fator de dignificação e empoderamento e valorizar a família como grupo de suporte e rede social primária”.
A “luta contra a pobreza” deve passar além dos necessários esquemas sociais de promoção humana. Deve tornar-se, de forma positiva, em Esquema de Promoção Económica e Social de toda população, através da garantia de rendimento para todos. Deveria tornar-se o projeto essencial de toda a governação do País…