S. Francisco de Sales inspira o Papa Francisco

Por M. Correia Fernandes

O dia litúrgico dedicado a S. Francisco de Sales ocorre em 24 de janeiro. Sempre esse dia tem sido referenciado e celebrado pela Voz Portucalense em cada ano, e muitas vezes comemorado com conferências e colóquios, que o lembram como patrono dos Jornalistas e escritores cristãos. Lembramos muitos encontros realizados em anos anteriores na Associação Católica, na capela das Almas, na capela dos Alfaiates (ou de nossa Senhora de Agosto) e na capela de Fradelos, iniciativas orientadas para a valorização da obra e do exemplo.

Quando Mario Bergoglio foi eleito Papa disse-se que houve três Franciscos que lhe inspiraram o  nome como Papa: o de Assis, o de Sales e o de Xavier, qualquer deles figuras inspiradoras de convicção e ação pastoral.  Chegou agora a vez de o papa Francisco publicar uma Carta Apostólica lembrando o centenário da morte de S. Francisco de Sales, com o título Totum Amoris est (“Tudo pertence ao Amor”), conforme o seu Tratado do Amor de Deus.

Francisco de Sales morreu em Lyon, em 28 de dezembro de 1622, sendo a sua festa celebrada no dia da sua sepultura  em 24 de janeiro de 1623 na igreja do Mosteiro da Visitação, cumprem-se este ano quatrocentos anos (1623-2023).

O ser patrono de jornalistas não é tarefa fácil, como não o foi a sua vida. Mas o confronto com o estilo e prática da temática que na comunicação social entre nós se baralha, em que os media dão importância ao fenómeno religioso e aos acontecimentos eclesiais não pela sua importância como mensagem para a humanidade, nem pela sua dimensão social ou cultural, mas pelo escândalo, real ou potencial.

Por isso  o Papa Francisco na sua Carta Apostólica recorda a sua ação pastoral de Bispo de Genève e o sentido da presença do divino na condição humana que conduziu a uma das mais conhecidas e apreciadas facetas da sua personalidade pastoral e literária: a bondade, a paciência e a simplicidade. Uma especial capacidade de convicção leva a que os seus sermões e os seus escritos se viessem a tornar paradigmas de uma arte de convencer, que tinha muito do vigor oratório dos grandes pregadores e escritores do seu tempo, ao estilo dom gosto retórico da época. Tudo nascia de uma fé forte e dinâmica, de um estudo da percepção dos sinais divinos na condição humana e dos sinais de humanidade que levam à descoberta de Deus. Por isso  deve tornar-se modelo para um jornalismo moderno, na busca de um crescimento equilibrado, pessoal, social e cultural, de uma força ascendente que possa conduzir  à sensibilização social para os valores da justiça, da paz, da concórdia, da cultura da solidariedade, da entreajuda, da não violência, da justa repartição da riqueza, da complementaridade entre capital e trabalho, da política como serviço social (como ensina  o Papa Francisco), da interação criativa entre o homem e a natureza, na preservação valorização dos recursos, na harmonia entre a pessoa, as estruturas sociais e o meio ambiente.

Totum Amoris est (“Tudo pertence ao Amor”)

A Carta do papa Francisco valoriza especialmente a sua obra mais espiritual, o Tratado do Amor de Deus, de carácter teológico e místico, que precedeu a Introdução à vida devota, escrito datado de 1609, uma espécie de manual de vida cristã para os seus tempos (foi impresso mais de 40 vezes na vida do autor). Importa também salientar a sua condição de clássico da literatura da língua francesa, que Dom Bosco tomou como inspirador da sua Congregação Salesiana.

O papa Francisco acentua a sua ação como pastor, com diálogos, conferências sermões e as suas cartas da amizade espiritual, e sobretudo a sua disponibilidade de “não recusar nada, nem desejar nada”, salientando que “foi na escola da Encarnação que aprendera a ler a história e a situar-se nela com confiança”. Acentua que são “a caridade e o amor que dão valor às nossas obras”, ilustrando “a difícil relação entre a contemplação e ação” e a escuta atenta da experiência como inspiradoras da ação pastoral.

O texto do Papa Francisco percorre o percurso formativo até se tornar Bispo de Genève, a dinâmica da formação humanista e o exemplo de mestres insignes em que reconheceu o espírito evangélico como fonte da sua ação como Bispo. Olhando as transformações do seu tempo, olha-as com a “intuição de uma mudança em ato e da exigência inteiramente evangélica de compreender como se poderia viver nela”, não afastando a história de Deus da história do homem que vive as circunstâncias, vendo nelas qualidades do amor divino”.

Foi esta “interpelação de uma mudança de época” que levou a interpretar o seu legado como expectativas espirituais do povo: “A graça tem força, mas não limita a liberdade”, abrindo caminho “novos e imprevisíveis horizontes, num mundo em rápida transição”, lembrando “algumas das suas opções cruciais, para habitar por dentro a mudança com sabedoria evangélica”. Reflete sobre o sentido da “verdadeira devoção”, sobre o sentido do «êxtase da ação e da vida», que deve conduzir ao “discernimento da verdade” em qualquer estilo de vida”. E lembra que “a verdade não é tal sem a justiça, a complacência sem a responsabilidade, a espontaneidade sem a lei”.

É pois significativo que permaneça a força inspiradora dos escritos de S. Francisco de Sales, mesmo para um mundo secularizado, no qual surgem as dimensões da espiritualidade hoje referenciada por muitos mesmo na sua dimensão não tanto teológica mas certamente humanista.