Por Jorge Teixeira da Cunha
Muitas pessoas ficam perplexas com o que se passa com os comportamentos morais de políticos venais, de agentes económicos corruptos, de agressões bélicas entre povos cristãos. Também podemos acrescentar que muitos comportamentos de homens de Igreja, abusadores de menores ou carreiristas sedentos de poder, são de molde a deixar desapontados quem os observa. A reação inicial é de escândalo perante tudo isto, pois escandalizar-se com o intolerável é a primeira manifestação do sentimento moral. Mas podemos ir um pouco mais adiante e tentar compreender o que se passa ao nível moral nos nossos dias fazendo referência ao ressurgimento de uma antiga heresia da graça que dá pelo nome de pelagianismo.
O pelagianismo, explicado de forma simplista, é uma corrente teológica da antiguidade que negava o pecado original e professava a possibilidade da razão humana se bastar a si mesma na aquisição da graça divina e na identificação do bem moral. Foi Santo Agostinho quem combateu com vigor o monge Pelágio, que se julga oriundo da Bretanha, talvez dos meios culturais celtas que foram grandes produtores de heresias. No fundo, o pelagianismo representa uma confiança exagerada nas capacidades da razão humana, confiança que, em último caso, provém da desarticulação dessa mesma razão com o absoluto que é o seu fundamento. Dessa forma, a razão segue a sua cavalgada autónoma, sem parar para se interrogar sobre o sentido dos seus ditames e sobre o alinhamento com a realidade a que deve a sua fundação.
O pensamento moral moderno, que explica muito do que se passou e se passa hoje, não anda longe desta remota forma de pensar. A sensibilidade europeia que comanda a nossa cultura há cerca de cinco séculos assenta na ideia de que os seres humanos são autónomos quando se trata de fundar a sua habitação responsável do mundo, de justificar as normas morais. A liberdade identifica-se com a autonomia. Por isso, Deus foi visto como inimigo da liberdade humana e a atitude religiosa deixada de parte como nociva ao verdadeiro desenvolvimento pessoal e político do ser humano.
Tudo isto necessitava de uma maior explicação. Mas para o objectivo de hoje basta-nos mostrar como esta confiança cega numa racionalidade desarticulada do absoluto e do bem moral precisa de ser pensada de novo. Com efeito, o crescimento do relativismo ético e do decisionismo põem em questão a nossa convivência cívica. Os movimentos morais de hoje, seja em favor da causa climática, do feminismo, da justiça, da condenação do racismo, da permissão legal da morte, são promovidos ou condenados na base de uma racionalidade muito carenciada de análise profunda quanto à sua validade.
Como seria possível superar o pelagianismo de hoje, patente nestas formas de pensamento e de conduta? O primeiro que há que dizer é que reforçar a razão é o verdadeiro caminho da liberdade e da democracia. Não se defende a razão pelo regresso às antigas formas de submissão, de irracionalidade, de concentração totalitária. Ontem, foi necessário combater o pelagianismo pela afirmação da precedência da graça divina como horizonte benevolente onde se origina e se funda a bondade do ser humano, sempre carente de conversão. Hoje, continua a ser necessário lembrar que toda a racionalidade humana é “um instituinte instituído”, para usar as palavras de Paul Ricoeur, quer dizer que a nossa racionalidade não pode ser eficazmente fundadora se não se confiar a uma graça antecedente que lhe possibilita ser o que é. Isto pode parecer paralisante para a razão, mas é, de preferência, a sua fundação verdadeira. Seja para gerir a política, seja a Igreja, seja para pensar os caminhos democráticos da nossa vida cívica, esta referência a uma anterioridade é a condição da verdadeira razão. Por outras palavras, nos dias que correm, será necessário pensar de novo a virtude moral, não como limitação do sujeito, mas como sua afirmação verdadeira. Ontem como hoje, o pelagianismo mostra-se como vagabundagem da razão. Ontem tivemos um Agostinho de Hipona. Hoje, necessitamos de voltar ao velho combate pela racionalidade aberta à graça divina.