Por M. Correia Fernandes
Acaba de ser publicada a segunda edição da obra do Professor João Alberto Baptista Patrício “Memórias de Medicina de Ontem – Antropologia da doença – ex-votos”, em edição de “Modo de ler” (Porto), na qual acresce à primeira, no dizer do autor, “um pequeno acrescento, em complemento do anterior, cuja feitura me concedeu um particular aprazimento espiritual”: “Um breve trecho dedicado á espiritualidade/religiosidade no contexto saúde-doença” e “novos quadros referentes a patologias não referenciadas na 1.ª edição”. Esta segunda edição, um prefácio de Diniz de Freitas, que considera obra como “uma peça fascinante de historiografia médica”, salientando as suas dimensões de História da Medicina, História de Arte, História da Religião ou Antropologia, porque é essencialmente um obra de Cultura, singular e original”. A edição relembra a “palavra preliminar” de António Barbosa de Melo, já´ falecido, e o prefácio do 1.ª edição de Walter Osswald. A designação “Ex-voto”, que traduz a justificação de cada quadro, de origem latina, tornou-se popular e encontra-se em multiplicidade de santuário ao longo de todo o país e também do Brasil. Acresce um importante glossário, que interpreta os termos utilizados nos ex-votos. Agradecemos a oferta desta segunda edição e a dedicatória do autor.
A quando da publicação da primeira edição, escrevemos neste semanário, em 2019, as reflexões que aqui recordamos:
A história da medicina guarda perspectivas muito diversificadas do entendimento das enfermidades, das suas raízes e dos seus remédios. Desde os longos tratados dos especialistas dos campos da anatomia, da patologia, e de outros ramos da ciência médica, até aos tratados e receituários populares das mais diversas inspirações, em que a sabedoria teórica se mescla com a experiência de contactos com as mais diversas enfermidades, as tentativas ou aproximações ao conhecimento das doenças tradicionais e às formas de as tratar e debelar, grande é o caminho percorrido e certamente novos caminhos estão aí para percorrer.
Um dos mais interessante fenómenos que se podem registar sobre estas caminhadas do espírito humano debruçando-se sobre os dramas dos males corporais é a profusão dos chamados “ex-votos”, imagens e narrativas que se encontram em muitos santuários, sobretudo nos de grande tradição devocional e peregrinatória, que se fundam na fé e na crença popular quando se verificaram situações de cura atribuídas à intervenção divina, de Nossa Senhora ou de um santo, o da devoção mais entranhada de alguns crentes ou fiéis.
Foi nesta linha que o médico, cirurgião, investigador e professor, antigo diretor dos serviços de Cirurgia dos Hospitais da Universidade de Coimbra, João Alberto Baptista Patrício, elaborou um estudo exaustivo desses ex-votos, colhidos nas mais diversas instituições, que narram as curas ou factos apresentados como tal, geralmente considerados “milagre que fez…”. Tudo ficou reunido num belo livro da autoria de com o título “Memórias de Medicina de Ontem – Antropologia da doença – ex-votos”, em edição de “Modo de ler” (Porto), com coordenação de José da Cruz dos Santos, editado em janeiro de 2019, que o autor editor teve a amabilidade de no-lo oferecer, o que registamos com gratidão.
Imagens e relatos sugestivos
O mais interessante desta espécie de enciclopédia da medicina popular e das crenças e entendimentos a ela associadas, bem como as terapêuticas que popularmente foram sendo encontradas, é o facto de registar esses “ex-votos” em belíssimas fotografias, transcrevendo os relatos das imagens pintadas, em escrita atualizada, o que geralmente é bastante difícil de conseguir soletrar, dado o caráter popular das legendas, com ortografia muitas vezes errada, e com muitas abreviaturas. A leitura que faz o autor é verdadeiramente antológica, traduzindo um grande conhecimento e um grande cuidado na sua apresentação. Para maior valorização, a leitura é transcrita no original português e em tradução em língua inglesa, o que dá a este estudo um caráter de divulgação que ultrapasse os cultores da língua portuguesa.
Assim, o conjunto, que reúne mais de uma centena de imagens, provenientes de cerca de 80 locais referenciados, de norte a sul do país e das aldeias ás cidades, revela, para cada pintura ou ex-voto, a respetiva imagem pintada, a legenda que a comenta e a sua transcrição em forma legível em letra de imprensa atual, seguida da sua tradução em inglês.
A ordenação do conjunto é feita segundo critérios de ordenamento temático, seguindo as diversas modalidades de classificação das enfermidades apresentadas como objeto de cura. Elas são sistematizadas segundo a classificação em conceitos modernos de medicina, para além da interpretação popular que lhe deu origem.
Assim encontramos a seguinte sistematização dos acontecimentos que originaram os ex-votos: Intervenções cirúrgicas, traumatismos e agressões, o ar e a saúde, águas e fontes santas, dores, febres, hemorragias, patologias da cabeça, patologias no sistema digestivo, patologia torácica, ginecologia e obstetrícia, patologia génito-urinária, patologias dos membros, patologia psíquica, patologias com manifestações cutâneas, outros padecimentos, o morrer, ressuscitados (curiosamente nesta categoria surgem apenas quatro ex-votos).
O autor vai assim procurando identificar nos relatos de observação imediata as raízes científicas da enfermidade padecida e as razões que conduziram à interpretação ou ao ponto de vista miraculoso apresentado na narrativa.
O resultado é um volume de 475 páginas, com identificação dos lugares de proveniência das imagens, um glossário dos termos utilizados nas descrições e a sua correspondência em termos médicos, além dos agradecimentos aos numerosos colaboradores que possibilitaram este trabalho verdadeiramente antológico. O volume traz ainda uma “palavra preliminar” de António Barbosa de Melo (1932-2016), antigo Presidente da Assembleia da República, e um prefácio de Walter Osswald, no qual afirma: “encontramos neste abundante material preciosos dados sobre hábitos, moradias, mobiliário, trajes, objectos de uso quotidiano, reproduzidos nas telas de forma mais ou menos hábil, que vai do estilo grosseiro ou naif à obra pictórica reveladora de preparação académica”.
O autor lembra dados importantes para o entendimento deste trabalho: “A história da medicina (saúde e doença) é povoada por culturas discursivas sem bases experimentais, por mitologias, por empirismos e que, a apesar dos avanços científicos e tecnológicos coexistem e são propagandeados na sociedade ocidental do século XXI”, lembrando que os ex-votos são “campo de investigação cativante que permite acompanhar as passadas do caminho que antecederam a modernidade médica”.
É neste contexto que o presente volume é uma obra fascinante, que une passado e presente, visão popular e visão científica, história e modernidade, dados e interpretação, leitura e interpretação. Um trabalho de incalculável valor humano e simbólico.