
Uma leitura do filme “Triângulo da Tristeza” *
Por Alexandre Freire Duarte
Vencedor, em maio passado, da Palma de Ouro do Festival de cinema de Cannes, “Triângulo da Tristeza” é um dos filmes mais intrigantes do ponto de vista teológico que vi (já lá irei). Fascinante é que isto surja no meio de uma corrosiva, e até regurgitante, sátira cínica e selvagem à arrogância, desligada da realidade, de tantos que nos governam e que aparecem como modelos sociais.
Pontualizado com momentos de preciso e precioso humor cortante e ângulos de câmara cheios de mestria, as ocasiões, tão repugnantes como relevantes para a trama deste filme, talvez possam acabar por ser mais suportáveis. Mas é esse “nojo” que está no cerne desta obra, que, embora apresente demasiados estereótipos e algumas desconexões nas tramas (por o diretor dar mais relevo às temáticas do que às personagens), trata com impenitente sinceridade, mas cheia de calor e matizes que despertam a reflexão, as nossas podridões individuais e comunitárias.
Sim: mesmo quando começamos a esperar o inesperável entre o que nos é familiar, as situações que se vão sucedendo são incongruentes, mas o grupo de atores e os cenários em que eles divagam dão-nos um bálsamo para admitirmos o que já disse duas vezes. A saber: somos nós, sociedade viciosamente decadente, dividida e fraturada (entre “esquerda” e “direita”, “ricos” e “pobres”, etc.) que estamos a ser colocados, no filme, diante dos nossos olhos, em vez de, juntos, nos vermos a cuidar do “bem comum”.
É impossível, como teólogo, não pensar no “Magnificat” depois de ver este filme. Claro que Quem opera as transformações sonhadas, proclamadas e garantidas naquela oração não Se identifica com as circunstâncias que levam às mudanças que ocorrem neste filme. Mas em ambos os casos, são os inicialmente desprezados e ignorados que se tornam a chave da sobrevivência de uma sociedade em que os seus membros chocam entre si por serem tão iguais nas suas diferenças abismais. Todos somos seres humanos num caminho de humanização, mas desviados desta por estruturas sociais (das governativas às da publicidade) que estimulam o seu oposto.
Sim: a par da antiga questão “por que sofre o justo?”, sabemos que há tantos irmãos nossos que se interrogam: “por quem nasci pobre e sem possibilidades?”. Ah… se houvesse um pouco de genuína bondade a brotar de cada um de nós, reconhecendo que o único pecado é o de não acreditarmos no amor do Ressuscitado que nos deveria igualar em Si, essas questões seriam, se não colocadas de lado, pelo menos mitigadas. E mitigadas, numa possível comunhão redentora em que perderíamos, sem remorsos ou expectativa de retorno, o que daríamos aos demais.
As nossas reverências e adulações pelos mais ricos e poderosos (nos quais se integram, agora e pelo que me dizem, os animais do Facebook, Youtube e Instagram) só revelam aquela nossa superficialidade e insegurança, típica de quem vive nas nuvens e acredita (garanto ter isso escrito no papel) que o canibalismo devia ser aceite do mesmo modo que se concorda com o comer carne de bovinos, suínos, etc. Travando a vida, medra tristemente a morte, mostrando que nestes tempos de confusão, não há limites aos erros (horrores?) pregoados com “boa fé”.
(* Suécia, França, Reino Unido, Alemanha e Grécia; 2022; dirigido por Ruben Östlund, com Harris Dickinson, Charlbi Dean, Dolly de Leon e Woody Harrelson)