A inconsútil identidade do Natal

Por M. Correia Fernandes

Em muitos areópagos mediáticos têm surgido lamentos pela ausência de símbolos histórico-cristãos nas ornamentações de Natal. Seria como despojar o sentido fundador e simbólico de toda a sua identidade original.

Devemos porém encontrar em toda a atividade humana o seu sentido mais íntimo, que ajude a superar o simples sentido superficial e imediato. Nos gestos e valores da nossa sociedade encontramos por certo muitas das essenciais dimensões do projeto cristão. O Cardeal José Tolentino de Mendonça tem manifestado, muito na esteira do Papa Francisco, uma interpretação profunda e uma capacidade de expressão desse sentido, duma forma particularmente eloquente, como aconteceu nas duas intervenções que teve no Porto, nestes dias. Quer a propósito do sentido da personalidade e ação de São Paulo, que considerou um grande impulsionador do pensamento antigo e do pensamento moderno (do pensamento antigo enquanto revelador da identidade e missão de Jesus Cristo no mundo greco-romano, e do pensamento moderno enquanto promotor dos grandes valores da pessoa e da comunidade humana), quer na afirmação do dia seguinte, ao proclamar, perante o Presidente da República e o Presidente da Câmara do Porto, que era necessário “dar mais valor político à esperança”.

E assinalou a proposta de toda a ação política se tornar forma de criar pessoas que sejam “testemunhas, transmissores e mediadores para um diálogo colaborativo entre gerações”, através de um “pacto inter-geracional celebrado em torno da gratidão e não em torno do ressentimento”.

Encontramos nesta afirmação do contraste entre gratidão e ressentimento uma expressão dos ensinamentos do Papa Francisco, dos quais modestamente também temos feito eco nestas páginas: é indispensável criar uma linguagem da reconciliação, quer em termo ideológicos quer em projetos políticos.

Na mensagem anunciada para o Dia Mundial das comunicações sociais em 2023, Francisco passa da anterior proposta de “escutar com o coração”, para a atitude atual de “falar com o coração”, usando a comunicação como ponte e não como muro. Falar com o coração, afirma, é dar a esperança ao que há em cada pessoa. Neste conceito se associam a verdade e a misericórdia, em vez das “polarizações e debates exasperados que exacerbam as almas”.

E acentua outra dimensão política desta mensagem: que a comunicação aberta ao diálogo favoreça o “desarmamento integral” que desedifique a “psicose da guerra”. O desarmamento da palavra e da linguagem é o caminho para o desarmamento integral.

Especialmente digna de relevo é a menção que faz da atualidade da encíclica da João XXIII “Pacem in terris”, na novidade dos seus 60 anos de vida pouco lembrada, pedindo que sobretudo os agentes de comunicação se sintam chamados a “exercer a sua profissão como missão de construir um futuro mais justo, mais fraterno, mais humano”.

Falando então da “inconsútil identidade do Natal”: devemos saber ler e interpretar neste conceito a presença da mensagem permanente da fraternidade, que se pode exprimir na alegria, no simbolismo da luz, nas forças edificadoras  das imagens múltiplas, nos caminhos da convivência, na linguagem que fraterniza, na dádiva que se partilha. Ou, na esteira paulina, na valorização do espírito, do pensamento, da cultura e da compreensão do mundo, na transmissão do conhecimento e na presença da intencionalidade religiosa que muitas vezes se esconde nos dramas humanos. O desafio do cristianismo é a capacidade de se saber explicar e ajudar na busca de sentido das coisas quotidianas e nos dramas que vivemos.

O tempo de Natal torna-se assim sempre um tempo de inspiração, tanto pessoal como social e cultural: há maior aproximação entre as pessoas, uma força centrípeta de solidariedade, um substrato  invisível de humanismo presente. Tudo isto possui a tal dimensão política de que fala o Cardeal.

A inconsútil identidade do Natal encontra-se nesta dimensão das pequenas coisas aliada aos grandes projetos. O anúncio da “paz na terra” nunca é separado da “glória nos céus”: é esta a verdadeira paz na terra.

Quem dera que esta mensagem de paz chegasse nestes dias aos ouvidos dos poderosos e, tal como na palavra do profeta, transformasse as armas em instrumentos valorização humana.

Quem sabe se a “inconsútil identidade do Natal” irá tocar os empedernidos e distraídos corações dos que obram o poder e as ambições…