Duas observações sobre a ajuda não punida para morrer

Por Jorge Teixeira da Cunha

Com toda a probabilidade, vai entrar em vigor em breve uma lei que regula a ajuda não punível para morrer em Portugal. Foi aprovada na Assembleia da República e parece provável, desta vez, ser promulgada. Esta ajuda para morrer vai poder acontecer em duas situações. Um primeiro caso, é a administração de um fármaco letal a uma pessoa moribunda. É a eutanásia. Um segundo caso é contemplado: a ajuda para morrer a alguém que, mesmo não estando próximo da morte, se encontra em condições de vida vistas como insuportáveis. É o caso do suicídio assistido. Em ambos os casos esta ajuda para morrer supõe, entre outras condições, a vontade actual e reiterada da pessoa em condições de realizar esse acto de vontade e de inteligência.

Para os crentes cristãos e para muitos outros, esta matéria é vista com um temor e tremor que aconselharia a não inovar a legislação em vigor. Porém, não foi esse o entendimento da maioria parlamentar que resolveu avançar, como se fosse um assunto urgente e prioritário para a vida da nossa comunidade política. Que podemos ainda dizer que não tenha sido dito sobre esta matéria?

Fazemos uma primeira observação sobre o sentido desta lei. Ela corresponde a um movimento que vem de longe e vai na direcção de emancipar cada vez mais comportamentos da tutela da lei. Foi assim com os delitos de opinião que deixaram de ser punidos, foi assim com o suicídio, foi assim com o adultério, para apenas dar alguns exemplos. Agora é a vez da ajuda para morrer. Em linha de princípio, este evoluir da legislação não nos causa uma grande repugnância. A moral cristã tem convivido com este recuo da lei jurídica em relação a comportamentos sem grande dificuldade. Quando a matéria se aproxima mais da vida do ser humano enquanto tal, como é o caso do aborto, e agora da eutanásia, o caso é mais denso e melindroso. Mesmo assim, existe um argumento dos promotores da não punibilidade que tem de ser atendido: “não punir” não significa admitir nem muito menos obrigar a praticar o aborto e a eutanásia. É uma concessão necessária numa sociedade pluralista, quer dizer, com pontos de vista divergentes sobre o significado desses comportamentos. Ficam, mesmo assim, por resolver dois problemas de fundo. O primeiro é a seriedade do sistema jurídico que perde a universalidade na protecção da vida de todos os seres humanos, admitindo excepções em relação a alguns casos. O segundo caso é a inversão dos valores, sendo que a vida parece menos valiosa do que os bens. De facto, temos um sistema jurídico que penaliza fortemente a obrigação de pagar impostos e as ofensas à propriedade dos possuidores. Por isso podemos perguntar sem cinismo: porque não há-de despenalizar também o furto e a fuga ao fisco, que são deveres menos vinculantes do ponto de vista axiológico?

Mas há outra observação mais relevante do ponto de vista da antropologia e da ética cristã. No pedido da despenalização da eutanásia e do suicídio assistido está patente, a nosso ver, uma grave incompreensão do mistério da subjectividade humana. De facto, para os cristãos, a vida do sujeito não pode ser encarada apenas de forma racional, como se a razão e a autonomia racional bastassem para a definição da “humanitas” e da felicidade. Os cristãos têm uma visão da subjectividade como experiência afectiva, sendo o afecto a forma mais originária de entrada na vida plena. Ora o afecto é alegria, é prazer, é sofrimento, é fome, é sede, é angústia, é saciedade e plenitude. E aqui vem a terrível pergunta: quando dizemos “não tenho medo da morte, tenho é medo do sofrimento” não estamos a colocar-nos fora do toque divino que nos cria e nos salva? Reparemos que este é o contexto em que muitos vêm como justificada a eutanásia. Mas é também o contexto em que muitos cristãos vivem acriticamente a sua fé, mesmo quando são justamente opositores da despenalização da eutanásia. Por isso, o que nos falta para termos direito a ser opositores à evolução legislativa é um aprofundamento da vida de fé. O Evangelho é inesgotável, seja qual for o tempo em que nos é dado viver. Será sempre a vida em Cristo que nos livrará da tentação de pedir a eutanásia ou o suicídio assistido. Por isso, mais do que lutar contra a lei, é necessário tornar credível o testemunho para convencer pessoas que vivem terríveis estados de saúde para terem a grandeza de alma de não perder o sentido da vida.