Por M. Correia Fernandes
Saiu à estampa há dias um livro do filósofo, teólogo e sacerdote checo Thomas Halík, edição de Paulinas, que tem por título “A tarde do cristianismo: o tempo da transformação”, cuja primeira afirmação acolhe a do Papa Francisco: “Este nosso tempo não é apenas uma época de mudanças, mas uma verdadeira mudança de época”. Este sentido de mutação que se verifica nas mais diversas sociedades e culturas não se pode dizer que seja original ou novo, embora os juízos de valor e o suposto conhecimento dos fenómenos verificáveis seja muito mais rápido que em épocas passadas. Mas importa lembrar as grandes transformações da passagem do mundo romano ao novo mundo saído das invasões dos povos do norte, a passagem ao extraordinário mundo medieval, tempo de todos os ideais, e deste ao universo antropocêntrico do Renascimento, ao contacto com o novo mundo, à passagem ao Iluminismo, ao racionalismo e às múltiplas teorias do final do milénio e do início do novo em que já nos instalamos. Fala mesmo de “um terceiro Iluminismo”, traduzido nas múltiplas formas de um pluralismo cultural.
Todas essas transformações, com as violências e os dramas vividos e com as incertezas do futuro, se afirmaram sempre com expectativas e esperanças de coisas novas e novos mundos.
Pensou-se certamente que o mundo religioso medieval se desmoronava. As transformações dos nossos dias são mais marcadas por um sentimento de temor. As capacidades da tecnologia parecem atemorizar a sociedade, desde as transformações físicas e tecnológicas até, talvez sobretudo às transformações biológicas, em que socialmente pouco se pensa, mas que podem tornar-se ameaçadoras da vida da humanidade e da natureza.
Neste contexto, se pode inscrever a interrogação de “um mundo em descristianização”, que parece estar a tornar-se num sentimento social, dos que vêm a realidade através da sua superficialidade. Importa, porém, lembrar que os valores do nosso mundo ocidental se tornam cada vez mais marcados pelos valores cristãos. Os apelos à dignidade da pessoa, à liberdade, à solidariedade, ao espírito fraterno, ao entendimento entre ideais políticos, podem tornar-se expressões do espirito cristão que se vai inserindo no tecido humano. É o que o livro de Halik interroga: “Um Cristianismo religioso ou não religioso?” , falando para o essencial da fé cristã como “uma nova forma, um novo lar, novos meios de expressão, novos papéis sociais e culturais e novos aliados”.
As propostas do teólogo passam também pelas propostas dos valores ecuménicos, pela valorização da espiritualidade como expressão da fé, mesmo por aquilo que chama “A fé dos não crentes” que apresenta como uma janela de esperança. Os recentes esforços do papa Francisco para valorizar o diálogo entre as religiões, que tantas vezes na História foram fonte de conflitos e de lutas, porque à sombra das religiões se escondia a ambição e o domínio pelo poder das terras e das gentes, os interesses económicos, constituem uma proposta nova para o tecido humano.
Como recordava o Bispo Carlos Azevedo na apresentação do seu livro, sempre a Igreja foi condicionada pela evolução da História e é na História humana que se deve manifestar o espírito sinodal, tal como na história bíblica a ação salvífica se fez através da história do povo, com os seus conflitos, forças interesses e lutas sociais, na passagem ad escravidão à terra prometida. Esta encarnação na história constitui o grande apelo das expressões da fé de hoje.
As mensagens que encontramos na liturgia deste tempo de Advento são particularmente eloquentes. O tempo messiânico é aquele em que repousa o espírito, como forma concreta da fuga do mal e da construção cultural: a sabedoria, a fortaleza, o discernimento devem conduzir ao temor de Deus. Eis de novo o papel das religiões. A imagem do trigo no celeiro e da palha no fogo é expressão deste propósito de que o Reino de Deus deve tornar-se a história dos homens. A Justiça e a Paz são o conteúdo do reino, devem tornar-se o objetivo de todas as políticas e de todos os projetos humanos. Todo o desenvolvimento deve tornar-se caminho de Paz. Assim se recolhe o trigo no celeiro.