O Cinema visto pela Teologia (47): “O Alfaiate”

Uma leitura do filme “O Alfaiate*

Por Alexandre Freire Duarte

É pena que haja filmes tão excecionais como este que não passem nas salas de cinema, mas apenas num qualquer canal por cabo a que eu, por exemplo, só acedo em visitas a amigos. Será que ainda irá aparecer no grande ecrã, como aconteceu com o “O Sobrevivente” que eu trouxe até aqui meses antes de isso suceder? Esperemos que sim, mas os meses já indiciam o oposto.

Decorrendo no período de uma noite e no espaço fechado (umas vezes acolhedor, outras cavernoso) da loja de um alfaiate na Chicago cheia de criminosos da década de 50 do séc. XX, esta obra é absolutamente magnífica do ponto de vista cinematográfico. Apesar de se poder dizer que “O Alfaiate” é um um drama criminal, ele é, especialmente, o estudo da personagem principal e dos meios com que ela tenta sobreviver a uma noite terrível de intriga, mentiras, traição e violência. E nisto, o singularmente carismático Mark Rylance é fabuloso, mantendo em equilíbrio uma paleta de emoções, ações, expressões faciais e entoações que o fazem alguém reservado, meticuloso e misterioso até aos créditos finais.

O cenário interior é distinto; as personagens encaixam-se perfeitamente, como peças de um puzzle delicado que a música estaladiça e temperada “cose” (e “coze”). E fá-lo, igualmente com as inteligentes reviravoltas, sucessivamente mais densas e tensas, que encantarão os (como eu) admiradores do melhor período de Alfred Hitchcock. Em suma, atrever-me-ia (talvez por ser algo irrealista, mas perfeitamente justo) a dizer que esta obra mereceria um Óscar.

A partir de um olhar teológico, diria que este filme é uma complexa abordagem a três temas capitais para o crescimento espiritual cristão. De um lado, temos a temática do estabelecimento de relações humanas sadias, como a que vemos ser criada entre as figuras representadas por Mark Rylance e Zoey Deutch, a ponto de ambos, a seu modo, acabarem por valorar o auto-sacrifício como meio de amar o outro. De facto, não se cresce em intimidade com Deus senão com os demais, mesmo que estes, desapontando-nos e afastando-se, também purifiquem a nossa consciência de que o único amigo fiel é Aquele.

Por outro lado, surge o tópico da perseverança mesmo através das maiores dificuldades e apuros. Já o disse: a vida cristã não é fácil, mas é por ela que queremos seguir em fidelidade ao amor de Deus-Amor, mesmo que algumas vezes, quem menos esperamos, nos tire o solo sob os pés e caiamos abraçados por um denso nevoeiro. Mesmo que abraçados igualmente por Deus, assustamo-nos como Jesus no Jardim das Oliveiras, talvez, também, por não O sabermos proteger.

Por fim, temos a importância da humildade para, submergindo-nos em nós, remexermos na nossa alma e chegarmos ao nosso espírito na esperança de, “aí”, encontrarmos aquela Luz (apagada pelas nossas quedas espirituais) que nos permite encontrar, quer um possível significado para essas quedas, quer para, na linha da persistência antes anotada, encetarmos novos começos desde a redenção do Senhor.

(* Reino Unido; EUA; 2022; dirigido por Graham Moore, com Mark Rylance, Zoey Deutch, Johnny Flynn e Dylan O’Brien)