
Por Secretariado Diocesano da Liturgia
Fossemos nós menos superficiais e rotineiros e não haveria necessidade de «ano litúrgico». De facto, todo o mistério de Cristo se encerra na celebração dominical da Eucaristia. E nele se condensa toda a história da salvação desde o Génesis ao Apocalipse. As primeiras gerações cristãs esforçavam-se por viver ao pé da letra a exortação paulina de 1 Cor 11, 26: «Todas as vezes que comerdes desse pão e beberdes desse cálice, anunciareis a morte do Senhor até que Ele venha». Viviam, assim, voltadas para o Oriente que é Cristo, o Kyrios, o Crucificado Ressuscitado – e não tanto um quadrante geográfico na rosa dos ventos – de Quem experimentavam a presença eficaz no memorial litúrgico, de Quem davam testemunho válido num mundo hostil, e cuja manifestação definitiva aguardavam vigilantes, perseverando na prática do bem. O «tempo» da liturgia era, pois, o «tempo» da Ressurreição ou seja, a eternidade. E esta, por definição, transcende o tempo cósmico e cronológico em que se inscreve a «crónica» das humanas vicissitudes. Na liturgia privilegiava-se, por isso, a perspetiva sincrónica e fazia-se uma experiência mística global do mistério de Cristo sem a preocupação de o decompor nos múltiplos momentos, aspetos e facetas que o integram: o todo gozava de precedência sobre as partes.
Mas se é verdade que o mistério de Cristo – anunciado, contemplado, celebrado e vivido desde a perspetiva da sua consumação pascal – é sempre uno e íntegro, contudo a perceção e experiência que dele se pode ter é sempre inelutavelmente condicionada pela finitude e limitação das faculdades humanas: por isso é sempre parcial, limitada, fragmentária, sequencial, diacrónica. E está ameaçada por outras insídias como a fadiga, o arrefecimento do fervor, a distração e a rotina. Por isso a Igreja, na sua solicitude pedagógica e maternal, querendo proporcionar aos seus filhos o alimento sólido e integral de todo o mistério vivificante do Seu Divino Esposo, decidiu parti-lo e reparti-lo em pequeninos. E assim foi organizando progressivamente o ano litúrgico, qual programação eclesial de mistagogia. É o que a Constituição conciliar sobre a Sagrada Liturgia explica no seu n.º 102:
«A santa mãe Igreja considera seu dever celebrar em determinados dias do ano, a memória sagrada da obra de salvação do seu divino Esposo. … Distribui todo o mistério de Cristo pelo correr do ano, da Encarnação e Nascimento à Ascensão, ao Pentecostes, e à expectativa da feliz esperança e da vinda do Senhor».
Nesta perspetiva, mais pedagógica, pastoral e diacrónica, sem se negar a «precedência ontológica» do todo, dá-se uma efetiva precedência psicológica à vivência das diversas partes que o integram. A perceção global será fruto da recapitulação e síntese final.
Olhando para a atual configuração do ano litúrgico, podemos dizer que as duas perspetivas estão presentes:
– No impropriamente chamado «Tempo Comum» predomina a visão sincrónica: em cada Domingo «per annum» celebra-se o mistério de Cristo na sua globalidade, sem circunscrever a atenção em aspetos ou momentos particulares. Entretanto também aqui o Leccionário, com a leitura sequencial e progressiva de cada um dos Evangelhos Sinópticos insinua um princípio de diacronia pedagógica (o «ciclo» do ministério público de Jesus…).
– Pelo contrário, nos chamados (também impropriamente) «tempos fortes» (Ciclo da Páscoa: Quaresma, Tríduo Pascal e Tempo Pascal; e Ciclo da Encarnação: Advento, Natal/Epifania) predomina a abordagem diacrónica que acentua e privilegia momentos, aspetos, facetas, «cores» particulares – «mistérios» – do Mistério de Cristo: único, perfeito e íntegro.
Nesta dialética teológica e pastoral pode entender-se melhor a articulação entre o Tempo Comum que chega ao seu termo com a solenidade de Jesus Cristo Rei e Senhor universal e o Tempo de Advento que se segue.