“Não deixes desfazer o sonho…”

Por João Alves Dias

Onze anos são passados sobre a sua morte (29/10/2011) e ainda me parece estar a vê-lo entrar na ‘nossa’ livraria. Não esquecerei a afabilidade do seu sorriso nem a fidalguia do seu porte…

Há dias, recebi um email que dizia: “João, ao mexer na ‘velha papelada’, saltaram-me estes três pequenos poemas oferecidos pelo P. Mário Salgueirinho”.

Esta evocação fez-me recordar o mestre a quem a Voz Portucalense muito deve. Quem não se lembra do colorido luminoso do seu ‘Vitral’?

O meu amigo Joaquim Barbosa, autor do email, é originário duma família, que vivia bem perto do santuário do Bom Jesus de Barrosas, que muito apoiou o P. Salgueirinho nos seus tempos de estudante. Foi aí que, bem cedo, se lhe tornou familiar.

Nessa casa, ainda menino, conheceu também D. Manuel Martins que, pouco tempo antes do seu falecimento, lhe manifestou a sua gratidão pelo modo como era acolhido quando acompanhava o seu amigo e condiscípulo.

O P. Salgueirinho nunca deixou de cultivar os laços afetivos que lhe vinham desse tempo e nunca foi esquecido por aqueles que muito lhe queriam. Foi no seio desta família que conheci o sacerdote que, já anteriormente, admirava e acompanhava na “oração da manhã” transmitida pela Rádio Renascença.

Emocionei-me ao receber estas lembranças que, agora, partilho convosco. São poemas de que ele tinha particular estima e que, certamente, muitos conhecem. Ao recordá-los, poderá aflorar aos olhos uma furtiva lágrima de saudade.

I – SOFRIMENTO

“Sofres? Que é afinal a tua dor / diante do sofrer do inocente? / Da criança que nasce no mar das lágrimas / sem saúde, sem pão, sem afeto, / morrendo lentamente…

Sofres? Que é afinal a tua doença / diante da tortura viva do incurável? / Já sem esperança no saber dos homens, cada minuto longo que passa / é suplício permanente e implacável.

Sofres? Que é afinal teu sofrimento? / -Teus desgostos, tuas angústias, / diante da desdita de tanta gente / sem alegria, sem carinho, / porque o sol do amor  / jamais aqueceu o seu caminho…

Sofres? Afinal, a cruz das tuas dores / cabe na sombra esbatida / da cruz de tantos outros sofredores…”

II – SOLIDÃO

“Sentes um vazio amargo / que te gela a vida, noite de dia, / Ninguém se lembra…/ Ninguém fala, ninguém escreve / ninguém dá uma presença breve / ninguém abre o coração / para aquecer essa solidão…

Sentes um vazio amargo. / Tens gente mas não tens amor / – gente que não sintoniza, / não partilha, não sorri / não acarinha, não sente…

Derrete o gelo da tua solidão! / Estende o pensamento, chispa luz / a quantos se arrastam tristemente / num mundo de sofrimento como os teus. / Mergulha o olhar nas tuas trevas / e encontrarás o sorriso perene de Deus.”

III – NÃO TERÁ ENCANTO A VIDA…

“Não deixes desfazer o sonho / Que te faz correr, / Que te faz sorrir, / Que te faz sofrer!

Não deixes morrer o entusiasmo / Que te faz criar, / Que te faz lutar, / Que te faz vencer!

Não deixes arrefecer o amor / Que te despertou, / Que te inquietou, / Que te apaixonou!

Com sonhos desfeitos, / Com esperança perdida, / Sem entusiasmo e sem amor, / Não terá encanto a vida…”

Que estes poemas reavivem em nós a lembrança dum sacerdote que sabia estar presente nas horas mais significativas da nossa vida,

Jamais esquecerei as palavras de conforto e esperança que escreveu e me enviou, em janeiro de 2010, aquando do falecimento no nosso filho mais novo e o carinho com que, no início de 2011, acariciou a cabecita do nosso neto mais velho que acabava de nascer.

Deixo-vos um dos últimos ditos sapienciais que lhe ouvi: “Ao envelhecer, crescem em nós três defeitos de que nos devemos acautelar: vaidade – achamos que fomos os maiores-; avareza – agarramo-nos ao dinheiro como tábua de consolação; desconfiança – pensamos que todos nos querem enganar”.

Não deixes desfazer o sonho…” Que a sua voz e os seus poemas não deixem de ecoar no âmago da nossa vida.