De São Paulo nunca se diz bastante ou De São Paulo de Teixeira da Pascoaes a José Tolentino de Mendonça

Foi há dias disponibilizado nas livrarias, em edição da Quetzal, uma última obra de José Tolentino de Mendonça, intitulada Metamorfose necessária: Reler São Paulo.

O contacto com esta obra, significativamente apresentada como dirigida a crentes e não crentes (como aliás todas as obras que se escrevam em que a honestidade intelectual e humana seja motivadora) fez-nos lembrar o Ano Paulino, celebrado em 2008, que reuniu iniciativas pastorais especialmente relevantes, particularmente na Diocese e na cidade do Porto, em cuja igreja de S. Paulo do Viso teve o seu encerramento, presidido pelo então Bispo do Porto Manuel Clemente, e que ficou assinalado naquela igreja por uma escultura ali inaugurada, da autoria de Ana Carvalho, uma nova visão do apóstolo entre o tradicional e o moderno, projetando o olhar e afrontando os ventos, como se assinala na memória descritiva que se encontra junto à imagem.

A nova obra de José Tolentino expõe ao longo das suas 175 páginas uma visão atualizada e mesmo inovadora  da figura criadora, da ação apostólica e do alcance civilizacional do chamado “apóstolo dos gentios”.

Mas a edição faz-nos recordar outras iniciativas, nomeadamente a pequena biografia de Joaquim Mendes de Castro (recentemente falecido) que a Voz Portucalense disponibilizou na altura, com o título S. Paulo: Síntese de sua vida; e divulgou igualmente um conjunto importante de obras sobre o apóstolo, de que se poderia salientar o conhecido São Paulo, Conquistador de Cristo, de Daniel Rops (Editora Civilização, 2006), para além da publicação Um ano a caminhar com S. Paulo, proposta da Conferência Episcopal Portuguesa para a vivência do Ano Paulino (elaborada por D. Anacleto de Oliveira, ed. Gráfica de Coimbra).

Mas a obra de Tolentino de Mendonça faz-nos também regressar a um clássico da Literatura Portuguesa, Teixeira de Pascoaes, na sua história romanceada e reflexão pessoal : São Paulo (ed. De Assírio e Alvim, 1984 e depois em 2002, com prefácio de António-Pedro Vasconcelos). A primeira edição data de 1934. Há também uma edição da Ática, 1959, tendo sido a edição original da Livraria Tavares Martins, do Porto, em 1934.

A visão de Pascoaes assenta numa visão de exaltação humanizada da pessoa de Paulo, que “foi a alma ansiosa que jamais parou, na subida, aquele sim do Amor gritado contra todos, os nãos do egoísmo materialista”, e que “se desentranhou em palavras tão reveladores do ser humano e da sua amplidão misteriosa… É ele o poeta das Alturas, com a fronte nas estrelas”.

É significativa aproximação de Paulo a Lucrécio, “os dois poetas que mais amo. Paulo o poeta supremo da loucura e da fome; Lucrécio, o poeta supremo da saciedade e da razão” (do Prefácio do próprio autor).

Terá sido esta aproximação da biografia paulina ao pensamento histórico, a sua aproximação à dimensão humana da sua vida de tanta aventura e tanto drama vivido, que lhe originou a compreensão da condição humana que levou muitas figuras do clero do seu tempo a censurarem asperamente o livro, o que levou Pascoaes a queixar-se de que o quiseram crucificar… Porém, é interessante como o seu contemporâneo, amigo e admirador, Miguel de Unamuno vê na obra um retrato de “nuestro espiritualismo desesperado y desconsolado, que saca de su desconsuelo y su desepero toda su fuerza eternizadora”. (Texto de Por tierras de Portugal  y de España, “San Pablo y Abre España”, também publicado  nesta edição de2002).

É interessante a inclusão de imagens de Paulo na visão do próprio Pascoaes.

A proposta de Tolentino

Coisa diferente é o trabalho de José Tolentino, embora próxima na admiração. A sua intenção de ser reflexão para crentes a não crentes está também traduzida no título da obra: Metamorfose necessária. Esta metamorfose, que induz uma nova forma de ler, interpretar e descobrir os gestos e a mensagem paulina, em intenção alargada a todas as pessoas de boa vontade, como aliás a de Pascoaes.

O próprio autor sugere linhas de leitura complementares: uma introdução à vida e obra de S. Paulo; a inserção no universo  do mundo cultural em que se inscreve; o sentido teológico da sua mensagem e uma espécie de roteiro para conhecer o universo paulino.

Para além do percurso doutrinário, encontramos também expressões da vivência espiritual do autor e como a mensagem paulina foi entrando na sua vida.

Mas do percurso da obra há expressões que particularmente definem a s linhas de pensamento: Paulo perto de nós, as fontes para o seu conhecimento, as linhas do seu retrato genético e transformacional, a construção da sua “rede de evangelização”, o sentido de tornar-se peregrino, a capacidade de construir um esquema de aproximação à pessoas e sociedades, a natureza das cartas e a sua relevância doutrinária, a presença nelas de uma espécie de autobiografia. E sobretudo a “Metamorfose em vista da fraternidade”, como “gramática do crer”. Esta metamorfose é proposta “em vista da esperança”.

Há uma afirmação especialmente motivadora:  “As grandes horas do cristianismo são também horas paulinas”: “Paulo é o autor de uma visão cultural e política ampla, e o seu discurso obriga a pensar a pessoa humana e a organização das sociedades no seu conjunto”, as “questões do destino humano e da metamorfose do mundo”. (P. 91)

Está claro que esta leitura doutrinária parte do conhecimento alargado e aprofundado de numerosas obras que analisaram ao longo dos tempos o pensamento paulino, desde Orígenes aos teólogos modernos, passando por Santo Agostinho e Lutero, pelos escritos apócrifos até autores relevantes da investigação bíblica europeia.

Constitui apecto  relevante da obra o seu carácter didáctico da leitura, proposto através da apresentação em capítulos subdivididos que orientam para as mensagens centrais , mostrando que a fundamentação bíblica e teológica pode e deve conduzir a uma compreensão mais próxima do leitor.

A imagem da capa é também simbólica, apresentado a estilização de uma oliveira que pode atingir os dois mil anos, como aquela que se encontra no jardim das oliveiras, ou a considerada mais antiga de Portugal, a quem são atribuídos mais de 3000 anos.

Todo o real é simbólico.