Para uma Igreja Ministerial

Foto: João Lopes Cardoso

Por Secretariado Diocesano da Liturgia 

«Ministérios laicais para uma Igreja ministerial» – este é o título do documento pastoral que a Conferência Episcopal Portuguesa publicou em 22 de junho de 2022 e com o qual se pretende animar um passo decisivo na renovação do tecido da nossa Igreja, prosseguindo o impulso do II Concílio do Vaticano que o Papa Francisco pôs de novo na ordem do dia, nomeadamente com o “Motu Proprio” Spiritus Domini (10 de janeiro de 2021) que se deve ler juntamente com a carta que nessa mesma data dirigiu ao Prefeito da Congregação da Doutrina da Fé.

A 60 anos da abertura do Concílio, temos de reconhecer que a vida da nossa Igreja e, em concreto, das nossas comunidades, continua excessivamente centrada no clero. Temos dificuldade em reconhecer aos fiéis leigos – que são «apenas» a esmagadora maioria do povo santo fiel de Deus – outro papel que não seja o de meros «colaboradores» da hierarquia da Igreja e «destinatários» do seu magistério e ação pastoral. Quando, na verdade, eles são sujeitos e protagonistas e é imperioso que assumam em plenitude, de forma corresponsável, a sua missão de batizados/crismados.

Sim. A Igreja é apostólica e os ministérios “apostólicos”, que se perpetuam na Igreja de geração em geração pelo Sacramento da Ordem, são estruturantes da Igreja de Cristo, do Cenáculo e do Pentecostes. Não é por uma qualquer delegação da comunidade dos batizados que eles presidem à Eucaristia e, consequentemente, à comunhão da Igreja. Fazem-no pela virtude do Espírito Santo de que foram revestidos pela imposição das mãos na Ordenação e que os capacita para agir verdadeiramente «in persona Christi capitis» – na específica e sacramental representação de Cristo Sumo Sacerdote, Mestre e Pastor, Cabeça do Corpo místico ou, com outra bela metáfora bíblica, Esposo da Igreja que somos. Mas a representação sacramental desta função «capital», não dispensa, nem absorve, nem – muito menos – anula a plena realidade do «Corpo». Nem corpo decapitado nem cabeça privada de corpo.

Tem razão o Papa Francisco quando reiteradamente afirma que a pretensa «questão litúrgica» (suscitada pelos que têm dificuldade em aceitar a Igreja do Concílio com a consequente reforma litúrgica feita “com Pedro e sob Pedro” e gostariam de fixar residência no passado sob a capa de uma «forma extraordinária» do Rito Romano que subsistiria ao lado da sua «forma ordinária») é, na verdade, uma questão eclesiológica. Bastaria uma breve visita à história do Missal Romano para nos darmos conta disso mesmo.

A «Missa estacional» do período «clássico» do Rito Romano supunha uma complexa e articulada participação ministerial. Verdadeiramente, a assembleia era o sujeito integral da ação litúrgica. Todos eram celebrantes, ainda que na variedade promovida e respeitada das ordens e das funções: bispo, presbíteros, diáconos, leitores, acólitos, cantores, os outros ministros, o povo de Deus em geral… Para daqui chegarmos à equação «padre = celebrante», da qual ainda não nos libertamos de todo, será necessário perder a riqueza inerente à pluralidade dos livros litúrgicos da Igreja antiga (Sacramentário, Leccionários, Ordines, Antifonário e Gradual…) e trocá­‑la por um livro único, o «missal» do qual se apropria o clero, «expropriando» os demais.

Essa passagem – datável do séc. VIII ao séc. XIII – foi gradual. No séc. XII já era excecional o uso dos antigos sacramentários, substituídos pelo missal plenário. Fator determinante no sucesso desta evolu­ção foi a multiplicação da celebração solitária da missa em que o sacerdote tinha de fazer sozinho tudo aquilo que na celebração solene ou comunitária competia a diáconos, leitores, acólitos e cantores. Deste modo, à medida que o Missal se impunha pela sua utilidade e comodidade, perdia-se o sentido comunitário e ministerial da celebração litúrgica. Cada vez mais, a Missa viria a ser competência exclusiva do sacerdote, o único celebrante, o único sujeito próprio da Liturgia. Chegar­‑se­‑á ao extremo de as rubricas prescreverem que, mesmo quando a celebração, nas suas formas mais solenes, comportava ministros (diácono, subdiácono/leitores, coro…), o sacerdote deveria ler em voz baixa aquilo que os leitores proclamavam para o povo ou que o coro, com ou sem o povo, cantava: como se só assim se acautelasse o valor (a «liturgicidade») de tais intervenções…

Com os missais impressos (desde 1470) e, depois, com o Missal de São Pio V (1570), essa situação não se alterou mas antes se endureceu, por razões contextuais. Foi essa eclesiologia litúrgica deficiente que o Concílio Vaticano II quis superar, entre outros modos, ao preconizar a reforma litúrgica.