Algumas reflexões sobre o Festival de Órgão e Música Sacra

Por M. Correia Fernandes

Encerrou no domingo 6 de novembro o II Festival Internacional de Órgão e Música Sacra (FIOMS), que decorreu na região do Porto e suas autarquias limítrofes desde 13 de outubro, sob a orientação do organista e maestro Filipe Veríssimo.

Há que reconhecer a esta iniciativa um amplo valor cultural e humanista, bem como de valorização do universo da música sacra, de tão grandes tradições e maiores méritos no universo cultural dos povos. Lembre-se que em festivais de todo o mundo, da Europa à China e ao Japão e às Américas do norte e do sul, encontram-se com grande frequência concertos e grupos que interpretam a música sacra dos grandes compositores de toda a história. Não é apenas numa Europa onde nasceu e se afirmou, mas igualmente em países do mundo onde a arte a e mensagem propõem e valorizam a riqueza humana e espiritual da música sacra, que são um bálsamo para a humanidade, tanto em tempo de pandemia como em tempos de guerra e sobretudo nos dias de paz.

A música para órgão é, por natureza da sua fonte de produção e pelo espírito que originou aquele instrumento e pela sua presença nas igrejas e catedrais, especialmente marcada pela espiritualidade da criação artística: exprime o que de mais genuíno possui o espírito e o coração humano.

Por isso, esta presença da música sacra no universo da múltipla música tão abundante no nosso universo de criatividade artística (patente na abundância de concertos de todo o tipo e lugar que nos são quotidianamente anunciados) constitui uma forma de evangelização e de valorização espiritual da população, e um bálsamo de paz e interioridade para o nosso universo onde  as sementes de violência destroem a grande projeto da pessoa humana na sua plena realização.

O êxito mais ou menos entusiástico que se verificou e que em vários dos concertos sentimos no rosto das pessoas e nas comunidades são, mais que motivo de satisfação para os promotores e intérpretes, motivo de regozijo para toda a comunidades humana.

Seja-me permitido salientar alguns dos concertos em que pude participar, já que em todos seria impossível. Começo por um que estava fora do programa do Festival, mas ao lado dele: o proposto em 10 de outubro no grande órgão catedral do Porto (certamente um dos mais notáveis da região), proposto por dois jovens organistas ligados ao Porto: Gregório Gomes – n. 1987 – e Samuel Pinto – n 1992. A originalidade esteve em tratar-se de uma proposta de música para órgão a quatro mãos e quatro pés, pouco vulgar entre nós. A execução foi brilhante, tendo apresentado obras originais para esse tipo de formação ou para ele adaptadas, desde Bach a Langlois. O público presente na catedral aderiu com visível entusiasmo à capacidade interpretativa dos dois organistas.

Dos concertos do Festival, ressalta a apresentação da obra integral para órgão de César Frank (1822-1890), nos 200 anos do seu nascimento, e que foi organista da igreja de Santa Clotilde em Paris (onde Filipe Veríssimo apresentará também um concerto em 13 de novembro). O conjunto das obras foi interpretado por Éric Lebrun, nos órgãos de Cedofeita, e da Senhora da Conceição.

De César Frank deve ressaltar-se a apresentação da sua sinfonia em ré menor, pela orquestra sinfónica da ESMAE, dirigida por Jan Wierzba, muito aplaudida pela plateia, bem como a excelente interpretação da sinfonia para órgão e orquestra, de Alexandre Guilmant (1837-1911), sendo solista em órgão David Cassan, que apresentou ainda obras de Buxtheude e Duruflé, para além de uma bela improvisação que valorizou o órgão de Cedofeita.

O mesmo aconteceu no concerto no órgão do santuário de Santa Rita, em Ermesinde, pelo organista austríaco Wolfgang Capek, que ofereceu um programa histórico, desde J. S. Bach, Mozart, Pierné, Jongen até F. Liszt, numa interpretação notável quer do ponto de vista do virtuosismo quer da simplicidade, numa adaptação da célebre Ave Maria de Arcadelt ao arranjo para órgão por Jean Guillou (recentemente falecido e que em 2015 atuou no Porto, igreja da Lapa), do poema sinfónico Prometheus (que lembra o mito de Ésquilo sobre a condição humana do herói), realçando o dramatismo desta complexa composição.

Neste concerto, apoiado pela Câmara Municipal de Valongo, se lembrou a celebração dos 20 anos da instalação do órgão de tubos da igreja de Santa Rita, especialmente notável pela sua sonoridade, instalado em 2022 pelo organeiro suíço Orgelbau Goll. Aliás, foi no município de Valongo que se encerrou o festival: em Santa Rita, S. Martinho do Campo e Matriz de Valongo, que assim se associou aos outros municípios onde decorreu o Festival: Porto, Maia, Gondomar, Oliveira de Azeméis, Arouca, Felgueiras.

Ressaltou igualmente a conferência de D. Carlos Azevedo, que convidamos a ler nas páginas centrais deste numero, da qual evidenciamos:

Valorizar o tesouro musical do passado não consiste em reconstruir artificialmente um mundo perdido, mas em transmitir um mundo vivo… Tantas obras musicais têm mais eficácia espiritual do que muitos sermões, enriquecendo espiritualmente e apelando à santidade.