Novas cidadanias, outras cidadanias

A propósito da eleição presidencial no Brasil

Por M. Correia Fernandes

Escrevo após o conhecimento da vitória de Lula da Silva nas eleições para a Presidência do Brasil. A vitória, por um lado esperada segundo as sondagens (ou pesquisas como se usa no Brasil), por outro lado tangencial (a diferença foi “apenas” de 2 milhões de votos, no universo de mais de 150 milhões da brasileiros (concretamente 156.454.011,segundo dados publicados), dos quais mais de 155 milhões residente no território brasileiro e cerca de 700 mil noutros países, entre os quais cerca de 80 mil em Portugal. Por outro lado importa lembrar que o voto no Brasil, além de obrigatório (para  os cidadãos brasileiros entre 18 e 70 anos de idade),é também realizado por via digital, o que já é um hábito há bastantes anos ali instituído e que ainda não chegou a Portugal, permitindo uma leitura rápida dos resultados.

Segundo número que vemos nas televisões e nos jornais, o candidato Jair Bolsonaro obteve 49,1 por cento dos sufrágios e Lula da Silva 50,9 por cento. Esta relação de proximidade fez recordar entre nó a primeira eleição de Mário Soares, que obteve, em 1986, à segunda volta, 51,18% dor votos, enquanto Freitas do Amaral obteve 48,8% dos votos. Ao invés do agora acontecido no Brasil em que venceu o candidato mais votado na primeira volta, Freitas do Amaral ganhara amplamente a primeira volta (46% conta 25% de Mário Soares). Não foi por isso que não se respeitou o valor da eleição, nem a participação política de ambos, cada um na sua função, acontecendo mesmo quer Freitas do Amaral acabou por ser Ministro dos Negócios Estrangeiros num Governo do Partido Socialista. Ainda não sabemos qual a reação da candidatura de Bolsonaro, que tinha prometido respeitar o resultado.

Esta é a proximidade, outras são as diferenças.

A eleição de Lula da Silva ocorre num país com 27 Estados, dos quais quatro  – São Paulo (34,6 milhões), Minas Gerais (16,2), Rio de Janeiro (12,8) e Baía (11,3) –  possuíam mais eleitores do que o total de Portugal inteiro e da maioria dos países europeus. Por outro lado, o maior número  dos eleitores encontram-se na zona litoral sul-oriental do país, com grandes diferenças de território e maiores de rendimentos. Por outro lado ainda, importa ter em conta que o total da geografia brasileira ocupa 8,5 milhões de quilómetros quadrados, com uma população total (em 2021) de 214 milhões de habitantes. Em extensão territorial é o quinto maior país do mundo, tamanho como toda a Europa Ocidental.

É significativa a sua unidade política, apesar do número e diferenciação de Estados. Na situação atual, espera-se que, pel a pequena diferença entre os candidatos, que o candidato eleito tenha em consideração e respeite a importância da quantidade dos apoiantes e do sentido político desse apoio, tendo em conta que a velha frase de que será o Presidente de todos os brasileiros. Importa ter em conta o sentido da votação naquele que até agora foi adversário político.

Registo com satisfação que nas declarações de vitória, Lula da Silva tenha afirmado que a prioridade da sua governação será a eliminação das situações de fome e de miséria e desigualdades sociais, referindo que sendo o Brasil um dos grandes produtores de alimentos no mundo deve ter a capacidade de obviar às necessidades dos seus cidadãos. É uma proposta digna, mas as ingentes dificuldades de a realizar podem conduzir ao seu fracasso. É sabido que um país de população pobre tem tendência a engendrar grandes bolsas de riqueza e de desigualdades sociais.

Que podemos esperar desta situação, tendo em conta que em Portugal se acolhem cerca de uma centena de milhar de brasileiros, num movimento simétrico do que aconteceu em tempos idos da partida de muitos portugueses para o Brasil? Um brasileiro residente em Portugal salientava isso mesmo, referindo que os portugueses no Brasil eram todos patrões e trabalhadores e que eles aqui procuravam emprego…

Vários países europeus apressaram-se a felicitar o novo Presidente. Isso pode ser um dado positivo, porque é indispensável a colaboração entre o maior país da América Latina com estrutura politicamente democrática e os países europeus, em que o sistema político, com os altos e baixos e as suas contradições, deve constituir modelo para o mundo, sobretudo quando se perfilam sistemas em que o autoritarismo e a autocracia se querem impor. Este apoio, para além das vantagens económicas, pode significar também um apelo aos países latino-americanos vizinhos, em que vigoram regimes autoritários que sigam também as vias de eleições democráticas.

Não sabemos por agora qual a atitude do candidato não eleito, que a linguagem corrente rotula de “derrotado”, o que constitui uma visão maniqueísta e eliminadora, quando na ação e na governação é mais importante o sentido da colaboração do que o sentido do conflito. Não ser eleito não pode ser sinónimo de ser derrotado, o que nasce tristemente da linguagem bélica que nos assola (e do pensamento subjacente).  O fantasma do que aconteceu com Donald Trump nos Estados Unidos pode pairar (oxalá que não) sobre o horizonte brasileiro.

Se a sua atitude e dos seus apoiantes se tornar uma atitude de colaboração dentro das normas democráticas, podemos augurar algo de construtivo para o Brasil. Se se tornar uma atitude de conflito e de destruição de projetos sociais que visem a valorização das populações, corremos o risco de aumento das desigualdades e dos conflitos sociais num país de contrastes.

As politicas de desenvolvimento social e de crescimento económico, assentes no valor da produção e do trabalho, e no sentido da repartição justa da riqueza orientada para o bem comum só podem ser edificadas em espírito de colabora e não de conflito.

Todos desejamos para o Brasil um tempo de paz, de entendimento social e de equilíbrio construtivo entre os sectores múltiplos da sua população.