
Por M. Correia Fernandes
No dia 19 de outubro de 2022 ocorreu o 20.º aniversário do falecimento de Manuel António Pina. Todos o conhecíamos das suas crónicas na última página do Jornal de Notícias, por onde passavam todos os universos da comunicação. A sua capacidade de leitura dos acontecimentos misturava o pensamento com a realidade e as múltiplas interpretações sobre ela, porque Manuel António Pina, jornalista, era também o escritor e o poeta do mundo.
O seu nome emergiu no universo literário e cultural do país e do universo da língua portuguesa com a atribuição, inesperada para todos os que não veem que lá está, do Prémio Camões, o maior das letras em língua portuguesa, referente ano de 2011, que lhe foi atribuído pela “inventividade e originalidade da sua obra”. Numerosos porém são os prémios que recebeu, designadamente de literatura para a infância, onde se afirmava a sua originalidade na leitura do mundo infantil.
A sua poesia encontra-se reunida no volume Todas as Palavras: poesia reunida publicado por Porto Editora, sob a chancela Assírio e Alvim, editada inicialmente em 2012, em segunda edição em 2013, reimpressa em Novembro de 2021.
A quando da atribuição do prémio Camões, publiquei na Voz Portucalense uma crónica, a propósito da sua morte, com o titulo “Foi apenas um pouco cedo” que agora releio com alguma nostalgia. Sobretudo relembro numerosas tertúlias em que dialogávamos no café Orfeuzinho, que tomou agora este nome oficial, e na confeitaria Petúlia, aberta até mais tarde. Ali fluíam as palavras, as reflexões, as críticas, os reconhecimentos e sobretudo uma amizade resultante da palavra e do convívio fraterno de gente que ali se saudava sempre cordialmente.
Lembro-me de o ter convidado para mais que um encontro de professores, a quando do Porto 2001, ao lado de Fernando Guimarães (“outro grande poeta do Porto”) e de Eugénio de Andrade. Como escrevi, “guardo com saudade a simplicidade da sua presença, da sua imediata aceitação, do seu espírito de colaboração. Como guardo a dedicatória do seu livro Algo parecido com isto da mesma substância, ed. Afrontamento: ‘Ao MCF, com muita estima do M.el A.P’.”
Registo esta passagem: “Olhando a poesia de Pina, aprendemos que ela é inclassificável. Bebe a tradição e adentra-se na modernidade. Olha o sentimento e explora o concreto, a palavra, o casual, o sentido do oportuno, a meditação que nos pode trazer uma cena de rua. Explora o óbvio e a contradição: ‘Não é possível dizer mais nada, mas também não é possível estar calado’”. Eis o verdadeiro rosto do poema, diz ele.
Ali escrevi também: “Não posso deixar de recordar a apresentação que MAP fez de uma obra de D. Manuel Clemente, ali no lugar mítico do Palácio da Bolsa, ao lado do salão árabe. O livro a apresentar era Portugal e os Portugueses. Elogiou a ampla e serena visão da nossa condição humana enquanto povo, e do plano confesso da sua condição de não crente, deslumbrou-se com a visão mais alargada do mundo que viu na leitura crente da nossa história”.
Os textos bíblicos
Dou agora comigo a vislumbrar na sua poesia a presença dos textos bíblicos, interpretando-os para além da sua mensagem original. Façamos o percurso de alguns.
O poema “Uma segunda e mais perigosa inocência” começa com ma citação de Marcos, 8, 15: “Aquele que quer conservar a vida perdê-la-á”, onde comenta “Aquele que quer morrer / é aquele que quer conservar a vida”, e mais adiante: “O Mistério não pode ser ocultado nem revelado”.
A partir de Gén. 3,23 (“O Senhor o lançou fora do jardim do Eden”), lembra a morte “como um nascimento”. O poema “Salmos, 27,8” (que escreve “o Vosso rosto Senhor eu procuro”) lembra o rosto e a solidão, “o teu rosto que se olha em mim”.
O conjunto de poemas “Um sítio onde pousar a cabeça” (1991) parte também do texto evangélico “O Filho do homem não tem onde pousar a cabeça” (Mat. 8,20) e reúne memórias e lembranças de gentes, espaço e lugares de infância.
O conjunto de poemas “Moradas” inspira-se na palavra de Jesus que diz “Tinha ainda muitas coisas para dizer, mas não as poderíeis suportar” (João 16,12), depois um dos poemas, “Corpo presente” recorda a frase de Santo Agostinho, escrita em latim: “Tudo o que eu via era a morte” a propósito do título “Corpo presente”.
Há uma citação de S. João da Cruz. “Ó noite que me guiaste, / ó noite amável mais do que a alvorada”, em que, sob o significativo título “último poema”, formula a pergunta: “nos teus braços quem me receberá?”.
Este percurso mostra como MAP trabalhava na sua mente o universo bíblico como inspiração do contraditório universo poético e vivencial. As palavras surgem como cultura, mas também como inquietação subjacente à escrita. Tudo isso tem um sentido.
Na sessão que celebrou os 20 anos da sua morte, na Biblioteca Almeida Garrett, foi apresentado o livro de Rui Lage A Presença do Mistério, Introdução à poesia de Manuel António Pina, Ensaio e Antologia, na Editora “Exclamação”, 2022. Nela se assinala “os pontos de contacto desta poesia com a literatura sapiencial: a coerência interna… a concisão e sobriedade discursiva, visível na recusa da adjetivação” (P.50-51). Esta “presença do Mistério passa pelas grandes inquietações da vida, desde a presença da palavra, as memórias da infância ou o mistério de si mesmo ou os grandes dramas da inquietação humana, o diálogo entre a criação pela palavra e a filosofia da existência nas suas múltiplas expressões. É o Mistério na poesia. No dizer de MAP: “Não é propriamente uma busca do mistério. É a presença do Mistério”.
Ouviram-se também textos seus e foi possível escutar da boca do Presidente da Câmara, Rui Moreira, o anúncio de que a próxima edição da Feira do Livro do Porto será dedicada à palavra e à escrita de Manuel António Pina, e certamente também a sua memória numa árvore (tília) na alameda, como sucede com outros companheiros seus de ofício (Sophia, Mário Cláudio, Agustina e recentemente Ana Luísa Amaral).