Agustina e a Cidade de Deus

Por Jorge Teixeira da Cunha 

Celebrou-se a 15 de Outubro o centenário do nascimento da escritora Agustina Bessa-Luís (1922-2022). E, finalmente, foi bom de ver um reconhecimento nacional dado a uma figura ímpar das nossas letras. Com mais incidência em Amarante, onde passou a infância, e no Porto, onde viveu, mas também em Lisboa, teve uma comemoração digna do seu mérito de escritora e de cidadã. Aqui queremos especialmente pôr em evidência a sua qualidade de crente e sobretudo a fina tessitura teológica da sua imensa obra.

Aos olhares mais atentos, Agustina irrompeu de forma intempestiva no ambiente um tanto pobre das nossas letras de meados do séc. XX. A miopia espiritual do chamado neo-realismo literário, herdeiro do positivismo, viu-se subitamente impugnada pelas figuras densas de humanidade das personagens de Agustina. A sua linhagem pode ser referida a outra figura do Porto, que é Raul Brandão e, mais remotamente, à tradição camiliana. E a sua obra foi-se avolumando numa torrente de criação que não parou de crescer até aos primeiros anos do novo século. A escolha e algumas das suas obras, sobretudo “A Sibila”, como texto de estudo na escola fez dela uma escritora conhecida, com as vantagens e desvantagens dos escritores e das obras de leitura obrigatória.

Agustina descreve penosamente as misérias da alma humana, mas há um núcleo interior onde a acção divina é o fundamento da realidade. Sob a sua pena impiedosa são escalpelizados os vícios individuais, os enredos de família nem sempre exemplares, as ambições políticas. O atavismo da nossa ancestral incapacidade de agir como povo está patente como em nenhum outro autor. Os seus romances dão corpo à intriga de figurões, de janotas, de artistas falhados. As personagens com mais densidade são geralmente femininas, num caso raro na nossa literatura e tanto mais interessante tendo em conta que a autora não manifesta quaisquer afectações de feminismo militante. A nossa cidade do Porto, com a sua milenar tendência para o rigorismo moral, a autonomia e uma certa mesquinhez, está amplamente presente em tantos momentos deliciosos da sua obra.

A atitude religiosa inautêntica, o formalismo dos crentes de tradição, a superstição, é tratada com a mesma crítica impiedosa dos outros aspectos da vida. Mas esse não é o tema mais importante de uma apreciação teológica da obra de Agustina. Podemos dizer que a Cidade de Deus se esconde dentro da cidade dos homens, de forma discretíssima, mas de um modo que faz da sua obra um fenómeno de densidade crística. Deus não aparece frequentemente nem de forma simplista nem gratuita. Desde as primeiras obras que o divino aparece de forma inesperada, em alguma personagem desadaptada, numa desconjunção delicada pela qual, não obstante, a narrativa se amplia de sentido. A marcha do comboio de um mundo em decomposição deixa subitamente ver uma luz ténue no fundo de um túnel, para quem lê com atenção. O divino apocalíptico, que dizer, de irrupção momentânea e inesperada, que vemos nos primeiros livros de contos, vai-se tornando menos evidente e é substituído por uma parusia do quotidiano, confiada a algumas personagens.

A obra de Agustina tem, pois, um enorme interesse para uma abordagem crente. Ela é um testemunho da encruzilhada do mundo em que nos encontramos. Na sua ficção, ela dá corpo à transformação de um cristianismo funcional e mesmo nacionalista, de uma igreja pensada como administração e como visibilidade, na direcção daquilo que deve ser: numa atitude crente enraizada na alma pela impressão do verbo que se fez carne para impregnar todos os aspectos da realidade. Tem, pois, ainda muitos frutos para dar a obra de Agustina que é seguramente a nossa maior romancista do séc. XX. E pode ensinar-nos a ser melhores crentes, ela que, discretamente, tinha no centro da sua casa um pequeno lugar de meditação e de oração, que é o sinal da centralidade do divino que acabamos de atribuir à sua obra.