
Por M. Correia Fernandes
Não é coisa que se costume, que um livro de poemas tenha por título global e por separadores temáticos expressões orientadas a partir da nossa esquecida língua mãe latina. É sabido como reconhecidos autores de outros tempos utilizaram conceitos nascidos do mundo clássico para composições suas, como podemos encontrar nos sonetos de Antero de Quental, com poemas intitulados “Solemnia verba” (palavras solenes), expressão buscada em Ovídio, ou “Oceano Nox” (noite oceano, onde escreve Junto do mar sentei-me tristemente), ou “Mea Culpa”, inspirada na liturgia cristã da conversão, ou mesmo o grego “Logos”, exaltando a valor da Palavra (maiúscula). Nos tempos clássicos a palavra latina inspirou sentimentos, emoções, mensagens, esperanças, um universo de profundas vivências humanas. Nos nossos dias, quem sabe, ainda nascem palavras de clássicos universos esquecidos mas sempre novos, cumprindo o que o autor escreve no poema 13: “Há nas línguas mortas/ uma certa decência, /um declive premeditado”.
Habeas corpus
Foi então o caso digno de memória que nasceu na autoria de José Rui Teixeira, professor, investigador em Filosofia e Teologia, crítico literário (diretor da Cátedra Poesia e Transcendência Sophia de Mello Breyner) e poeta, que acaba de dar à estampa o volume de poemas com o título Habeas Corpus, ainda por cima editado por “Officium Lectionis edições” e com dois títulos interiores igualmente nascidos na língua latina: “Omnes eodem cogimur” (traduzido “somos todos impelidos para o mesmo lugar”, das Odes de Horácio) e “Omnes una manet nox” (traduzido “una só noite nos espera a todos”), igualmente nascida das Odes horacianas.
Na apresentação do volume, em que no espaço da Reitoria da Universidade do Porto se falou de poesia, de pensamento e de teologia, o escritor Valter Hugo Mãe recordou outro tema relacionado com o “habeas corpus”, com a referência a “Autópsia”, título com que o autor reuniu em 2019 a sua poesia. “Habeas corpus” é um conceito jurídico, instrumento processual destinado a garantir a liberdade de uma pessoa acusada enquanto não for condenada. Por outro lado, o conceito suposto de “autópsia”, processo legal para determinar a causa da morte, tem origem não numa realidade corporal, mas numa atitude intelectual e psicológica que traduz o olhar perscrutador sobre a própria psique, o espírito e a mente, os olhares e os sentimentos ou afetos de alguém (de auto+ópsis, olhar para si), portanto um sentido diferente do que lhe é dado juridicamente, de observação de cadáver para determinar a causa física da morte. “Autópsia” parece assim querer significar um olhar (poético, emocional, subjetivo, espiritual) sobre si mesmo. Segundo o seu testemunho, muitas vezes escreveu o poema a partir do sonho, o que fez lembrar a palavra de Álvaro de Campos: “a consciência de que tudo é sonho, como coisa real por dentro”.
Este Habeas corpus é também isso mesmo: um esforço de traduzir as muitas inquietações e dramas vividos pelo poeta.
O volume é composto por 40 poemas, sem título, identificados pelo seu primeiro verso. O percurso dos poemas assenta em experiências sensoriais (Há dias em que amanheço umbroso) e em experiências afetivas muitas vezes dialógicas (queria dizer-te que a morte é uma transparência), do universo do entre eu e tu ou entre nós e eles (comovem-me as cartas que se perdem), ou entre a natureza e a vida (a roseira ergue-se sobre os destroços, esmago a voz contra o silêncio).
Há momentos e dramas de memória, como o do primeiro poema: “Muitos teriam preferido morrer /se soubessem dos rigores deste inverno”, em que “Recordo o cabelo negro da menina/na areia, bulido pelo vento”. Estas recordações surgem no texto em versoa escritos em tipo gráfico mais pequeno, como escondida sugestão lembrada.
É dedicado a Rui Nunes, “este livro inacabado”. Certamente: todos os livros são inacabados, porque há sempre outros à espera, ou há sempre uma espera de outros. A densidade breve destes poemas fazem-nos esperar que os 48 anos do autor (autorreferenciados na apresentação) possam conduzir a novos acabamentos.
Para além de investigações e meditações como Vestigia Dei. Uma leitura teotopológica da literatura portuguesa (2019).