Uma leitura do filme “O homem que matou Dom Quixote” *
Por Alexandre Freire Duarte
Após 20 anos de preparação, este filme de Terry Gilliam parece-se com as nossas vidas: por mais que nos apliquemos nas suas edificações, estamos sempre inacabados e diferidos face ao que cremos viver. Quase tão diferidos quanto o atraso, de mais de 3 anos, no estrear desta obra em Portugal e o atraso de 8 meses para eu rever as minhas notas, tiradas em fevereiro deste ano, e trazê-las até aqui.
O mínimo que pode ser dito de “O homem que matou Dom Quixote” é que não há mínimos que o possam descrever. Tudo nele é um cuidadoso e apaixonado exagero, em que a própria aparente ausência de sustentáculo, prumo e sentido narrativo explode com força num corrupio visual frenético, simultaneamente bizarro, cómico, trágico, selvagem e romântico que simula o, perfeitamente modulado, arco inverso percorrido pelas suas duas personagens principais.
Acabando a joeirar em direções opostas, estas duas figuras fazem afluir nelas mesmas a mistura de toda a história de sanidade malsã e insanidade sã. E isto, por dois desempenhos magníficos em que a presença melancolicamente grave de Pryce se mistura à cintilante energia carismática de Driver, tendo por detrás uma ótica visual gloriosa e atraente, repleta de cenários paisagísticos e arquitetónicos históricos (também portugueses) que fixam a imaginação à realidade e vice-versa.
A vida cristã não é uma vida que se queira “normal” segundo a lógica abusiva, despótica, traumática e controladora em que existimos. Não. Ela, mediante uma imaginação evangelizada, tem que ser “anormal” na sua alegria, humildade e ação amorosa que resgatam o que parece irresgatável. Só assim anunciaremos os verdadeiros valores e denunciaremos aqueles que, se fazendo passar por estes, nos traem e, ensandecendo, nos exigem comportamentos narcotizantes.
Deus não quer pessoas que “vivam no conformismo das ondas sociais”, mas santos expressivos e impressivos que, respetivamente pelos seus olhares e mãos, se fazem à aventura do amor sem terem medo de, assim, terem que morrer às ilusões que nos são impostas. Se Jesus já não fosse mais real do que tudo o mais, teria que ser imaginado até o ser, pois só Ele, reunindo o sonho de Deus só Amor e o pesadelo do ser humano ferido, nos abre a perceção do coração para vivermos integramente unificados num centro espiritual inquebravelmente íntegro e numa imaginação fielmente criativa que leva ao real e não à (nossa) ideia do real.
Eis um centro que poderá mover e comover todos nós a, em comunidade, querermos tudo fazer para sermos fieis a quem podemos ser na linha de uma essência da liberdade que é o amor. E este facto, sem quaisquer reservas face a uma realidade calosa e fria, que, tantas vezes, nos envolve sob os enganos do poder e da riqueza. Tudo isto está nesta obra e, embora não saiba se Gilliam é cristão, atrever-me-ia a dizer que, se não o for, será alguém que, sendo discípulo do amor que une a verdade ao humor, muito pugna para não o ser, pois só assim lograria dirigir esta fábula artística tão cristã e crística que é “O homem que matou Dom Quixote”.
(* Espanha, Bélgica, Portugal, Reino Unido, 2018; dirigido por Terry Gilliam, com Jonathan Pryce, Adam Driver, Stellan Skarsgård, Olga Kurylenko e Joana Ribeiro)