Rebobinando a fita do tempo…

Por João Alves Dias

No dia 15 de setembro, o Jornal de Notícias publicava na sua primeira página uma grande fotografia do ‘Mercado do Bolhão’ com a seguinte caixa: “Bolhão – Regresso ao passado com arquitetura de futuro- Mercado emblemático do Porto reabre hoje após quatro anos de obras”. No interior, ocupava duas páginas com fotografias do ‘histórico e renovado Bolhão’ e escrevia: “Perdeu um pouco da velha patina que tinha, mas que não eram mais do que marcas de décadas de falta de intervenção e de investimento que resultaram na degradação e insalubridade. Este Bolhão pode parecer menos castiço aos mais puristas mas, como afirmam os comerciantes ‘o que define o mercado é a alma das pessoas’ e essa persiste”.

No dia da reabertura, a RTP1 emitiu o ‘Jornal da Tarde’ a partir desse local simbólico que está no coração da cidade. Enquanto o jornalista Hélder Silva falava da história e da presença da RTP nesse mercado, corria, em rodapé, a legenda “Primeiras imagens são da Visita Pascal de 1964”. A exibição, que se seguiu, dessa relíquia dos seus arquivos (pode ser visto na net, no ‘sítio’: hhps://www.rtp.pt/noticias/pais/memorias-do-mercado-do-bolhao-no-arquivo-historico-da-rtp_v1433193), fez-me rebobinar o fio da memória e viajar até esses tempos de gratas vivências. Já lá vão mais de 58 anos…

A Visita Pascal ao Bolhão e às casas comerciais das ruas adjacentes realizou-se na 3ª feira de Páscoa: nos dias anteriores, o comércio estava encerrado. Como essa zona da cidade pertencia à paróquia de Santo Ildefonso, competia ao seu pároco – P. Adriano Martins – a sua organização. Dado que os anos já lhe iam pesando, delegou no ‘coadjutor’ a sua representação. As ruas engalanaram-se de colchas e as casas comerciais enfeitaram as montras. Era uma festa que muita gente gostava de apreciar.

Da parte da tarde, à medida que o Bolhão se aproximava, a romaria foi crescendo. A entrada no Mercado fez-se pela porta norte que abre para rua Fernandes Tomás.

Quando chegámos ao parapeito sobre o interior do mercado, foi o deslumbramento: colchas de variadas cores pendiam das varandas e varandins, flores perfumavam os ares e uma multidão comprimia-se em todos os espaços livres. Fez-se silêncio e aprimoraram-se as posturas…

No patamar intermédio da escadaria, o sacerdote começou por fazer, em latim, a aclamação ritual: “Haec dies, quam fecit Dominus: exsultemos et laetemur in ea (Este é o dia que o Senhor fez: exultemos e cantemos com alegria!). Após uma breve palavra de saudação, aspergiu, com gestos largos e abrangentes, as pessoas que se apinhavam na escadaria e se alongavam pelo mercado. De seguida… num primeiro momento gerou-se alguma confusão: todos, especialmente os mais jovens, queriam ser os primeiros a chegar à cruz. Depois de a dar beijar aos muitos clientes do mercado que enchiam as coxias – ir ‘beijar a cruz’ ao Bolhão era um hábito – o compasso passou pelas lojas onde era acolhido com sorrisos e gestos de fé pelos donos e familiares.

Ao final da tarde, o ‘Senhor Abade’ juntou-se ao compasso e presidiu ao seu encerramento. A celebração pascal terminou com um jantar festivo, organizado para e pelos comerciantes que convidaram as autoridades e outras pessoas gradas da cidade e arredores. Quem nunca faltava era o Senhor Padre Grilo, envolto na sua capa preta. A presença deste sacerdote benemérito e querido dos vendedores tinha um objetivo bem conhecido e que se repetia todos os anos: angariar fundos par a sua ‘Obra’, em Matosinhos. E saiu de lá com palavras e gestos de gratidão.

Os comerciantes do Bolhão eram e são gente de generosidade e de fé como testemunha a imagem de Nossa Senhora da Conceição – a sua patrona – que colocaram na entrada principal, virada à rua Formosa. A Senhora lhes sirva de conforto nas horas tristes e os acompanhe nas suas alegrias.

Que os portuenses, na linha dos seus antepassados, façam do Bolhão um lugar de convívio e de compras. O tempo passa mas a alma do mercado permanece: pessoas genuínas, de coração amigo, espontâneas nas suas emoções e com uma piada na ponta da língua. É gente com rosto e com história que bem merece ser apoiada.