
Por João Alves Dias
Já um mês é passado…
A comunicação social informou: ontem, dia 5 de agosto, morreu a poeta, escritora, tradutora, professora Ana Luísa Amaral, recentemente galardoada com o Prémio Rainha Sofia de Poesia Ibero-Americana. A Universidade do Porto recordou a ‘sua’ professora como “uma autora extraordinária, uma académica distinta e uma cidadã empenhada”.
Entre muitos testemunhos, relevo Uma ausência que dói, de Teresa Vasconcelos, do Movimento do Graal (7Margens, 6 de agosto): “Morreu-me uma irmã. Ana Luísa Amaral “desabitou” este mundo. Partiu para o Infinito deixando-nos o rasto de luz da sua poesia. Que esteja na plenitude que tanto desejou ao longo dos anos e que a desinquietou levando-a a fazer poesia. Como quem respira. (…) Uma força da natureza. Mulher solar: um girassol. (…) Mulher também do quotidiano e do transcendente”.
Quando leio os seus poemas, saltam-me ao pensamento as palavras do papa Francisco que parafraseei no título: “Muitas vezes se fez da santidade uma meta inacessível em vez de a procurar e abraçar na existência quotidiana, no pó da estrada, nas aflições da vida concreta e – como dizia Teresa de Ávila às suas irmãs – ‘entre as panelas da cozinha”. (Missa da canonização de Carlos de Foucauld).
E porquê? Porque a poeta, atenta aos ritmos domésticos, comove-se com gestos do dia-a-dia. Se, para Aristóteles (Metafísica) o espanto está na origem da filosofia, para ela, as coisas mais comezinhas são ”fontes de espanto polifónico” e portadoras de silêncio contemplativo: “uma migalha entre as folhas de um livro”; ”sentei-me com um copo em restos de champanhe a olhar o nada”; ”minha filha partiu uma tigela na cozinha”; ”descascar ervilhas ao ritmo de um verso”; “o lavar os dentes ao abrir do dia”; “cebolas outra vez, os cumes coroando-se montanhas”; “Mostrar-te leite-creme é um prazer”.
Como escreveu Maria Irene Ramalho no Posfácio do livro “Ana Luísa Amaral – O Olhar Diagonal das Coisas”, Assírio & Alvim, abril de 2022, que integra os 17 livros de poemas publicados até essa data:
“No romântico Shelley, a musa anda associada às alturas, na nossa contemporânea ou, talvez mais bem dito, pós-romântica Ana Luísa Amaral, são as coisas do chão que inspiram – como amendoins ‘apanhados do prato vorazmente’”. E a propósito do último livro até então publicado, Mundo, comenta: “Abre com dez ‘observações’ bíblicas a ecoar no nosso vário e situado ser ‘do mundo’: a formiga lutadora em contramão; a centopeia engolfada pelo dilúvio, a elegante pega equilibrista, o peixe preso no anzol, a aranha de fascínio aterrador, a abelha portadora de vida em seu corpo; o pavão ufano da desasada beleza. (…) Os ‘observados’ falam de si e de todos nós”.
São alegorias que acicatam a nossa consciência individual e coletiva, como em “Dois cavalos: Paisagem – Estão lado a lado, / naquela praça em frente da igreja, /nesse calor de quando o mundo oscila/na linha do horizonte, /e o rio quase defronte, /uma miragem. (…) Arreios, cabeçadas, todos os instrumentos /do que parece ser mansa tortura/ mais freio, ou bridão,/parecido com aquele colocado na boca das mulheres que desobedecem,/ E era assim há muito tempo,/pelo menos quatro séculos,/ou semelhante ao que se usava/ nos escravos, cobrindo-lhes a boca/para que não se envenenassem,/porque se recusavam a viver/escravos/e era isso quase agora, no século passado.”
O dia-a-dia não se esgota em si mesmo, é uma janela para o transcendente, uma escada para o divino. Essa a raiz da nossa esperança que o ‘Discurso da Montanha’ (Mt 5,1-7,29) alimenta e transfigura.