Um testemunho sobre Educação, Fé e Cultura 

Por M. Correia Fernandes

Na memória sobre Ana Luísa Amaral, publicada no número de 7 de setembro, recebemos da autora a seguinte reflexão, que deve fazer pensar as gentes da Igreja e as gentes da sociedade de hoje, incluindo as gentes da escrita e da comunicação social: “Penso que cada vez é mais importante assumir este diálogo entre a fé e a cultura. Os tempos mudaram e, recentemente, tenho ficado surpreendida com as opiniões (levianas, claro) de vários alunos que consideram que as pessoas que têm fé são ignorantes e supersticiosas… Enfim, sinais dos tempos…”

A Educação em Portugal (dizemos “educação” e não apenas “ensino”) tem vindo a viver tempos controversos e conturbados. Isso acontecia mesmo antes da convulsão trazida pela pandemia, que desarticulou todo o sistema e o pôs a funcionar por engrenagens espúrias do tipo tecnológico, com soluções de rapidez e conveniência, edificadas através da ausência e dos medos, que conduziram a um conjunto de fórmulas às quais o acto e o gesto educativo andam alheios, todo o processo educativo se sentia em desmoronamento.

Vieram as ausências aos encontros educativos, vulgarmente chamados “aulas”, o distanciamento entre educadores e educandos, a proliferação de processos espúrios em que a ação educativa é desvirtuada e tantas outras formas de desassossego pedagógico de que a sociedade infelizmente se tem vindo a alhear e a tornar-se vítima. A educação deixou de ser um tema e uma inquietação governativa, em favor da centralidade da saúde, das perspectivas tecnológicas e pseudoambientais, do império do universo tecnocrático, e nos últimos dias, tristemente, pelas ações e efeitos da guerra. Tempo houve em que o Ministério da Educação era uma ministério valorizado, quer pelo prestígio dos seus titulares e dirigentes, quer pelo alcance das suas iniciativas nos campos familiar, social e cultural.

Nas duas últimas décadas tem-se verificado que a organização de todo o processo educativo se tem vindo a transformar num universo de estruturas centralizadas em torno de uma espécie de “burocracia educativa”, em que substância é engolida pelo processo, e o conhecimento substituído pela tecnologia.

Regressando ao tema proposto, o diálogo entre a Fé e a cultura tem sido também uma repetida inquietação do papa Francisco, designadamente na sua celebrada encíclica “Laudato Sì”, onde escreve:

“Nos tempos modernos, verificou-se um notável excesso antropocêntrico, que hoje, com outra roupagem, continua a minar toda a referência a algo de comum e qualquer tentativa de reforçar os laços sociais. Por isso, chegou a hora de prestar novamente atenção à realidade com os limites que a mesma impõe e que, por sua vez, constituem a possibilidade dum desenvolvimento humano e social mais saudável e fecundo. Uma apresentação inadequada da antropologia cristã acabou por promover uma concepção errada da relação do ser humano com o mundo” (n. 116).

Será esta “apresentação inadequada da antropologia cristã” que conduz ao conceito referido de que as pessoas que têm fé são ignorantes e supersticiosas… Esta é uma  centralização da religiosidade apenas na sua dimensão popular e superficial.

É pois pelos caminhos da cultura que será possível transmitir às gerações do hoje a dimensão da fé esclarecida e esclarecedora para os grandes dramas da vida e da condição humana.

Esse diálogo entre fé e cultura integra o diálogo com a natureza, que Francisco insere na visão integral do espírito humano: “A par do património natural, encontra-se igualmente ameaçado um património histórico, artístico e cultural. Faz parte da identidade comum de um lugar, servindo de base para construir uma cidade habitável. Não se trata de destruir e criar novas cidades hipoteticamente mais ecológicas, onde nem sempre resulta desejável viver. É preciso integrar a história, a cultura e a arquitectura dum lugar, salvaguardando a sua identidade original. Por isso, a ecologia envolve também o cuidado das riquezas culturais da humanidade, no seu sentido mais amplo” (n. 143).

E lembremos esta afirmação: “Somos todos vulneráveis e é esta vulnerabilidade que é comovente, que nos devia fazer pensar na necessidade de exercitar a solidariedade para com o outro” (Ana Luísa Amaral, poeta e ensaísta, 1956-2022). A maior vulnerabilidade talvez seja a do espírito ausente ou esquecido, a da sabedoria na relação entre a natureza e o homem, a do pensamento introspectivo e a da dimensão espiritual e transcendente da pessoa…