
Por Secretariado Diocesano da Liturgia
Ainda não terminamos o nosso comentário à Carta Apostólica Desiderio desideravi e eis que o Papa Francisco nos brinda, durante a «pausa» estival, com duas intervenções relevantes em matéria de Pastoral Litúrgica: a mensagem no 50º aniversário de Ministeria quaedam (15 de agosto) e o Discurso aos Professores e cultores de Liturgia de Itália por ocasião do 50º aniversário da sua Associação. Reservamos para ocasião futura uma breve «recensão» da mensagem em que o Papa abre um diálogo com as Conferências Episcopais sobre o tema dos ministérios instituídos. Hoje partilhamos com os leitores de VP o mais recente discurso de Francisco aos professores italianos de liturgia.
O Papa começou por enaltecer o papel da Associação na receção da reforma litúrgica na Itália, desde a etapa inicial da preparação dos novos livros litúrgicos até às fases posteriores de acolhimento e aprofundamento. E esta tarefa de receção não está concluída antes «continua em curso e encontra-nos a todos empenhados no aprofundamento que requer tempo e cuidado, um cuidado apaixonado e paciente; requer inteligência espiritual e inteligência pastoral; requer formação, para uma sapiência celebrativa que não se improvisa e precisa de ser continuamente afinada».
Francisco recomenda aos liturgistas a prática da «sinodalidade» que se concretiza, no campo académico, pela prática da interdisciplinaridade que põe em diálogo as diversas ciências teológicas e ciências humanas e a criação e alargamento de redes à escala nacional e internacional entre instituições que se dedicam ao estudo da liturgia. Mas este diálogo não pode restringir-se ao âmbito académico. Deve também pôr-se à escuta das comunidades cristãs. De facto, o santo povo fiel de Deus carece sempre de mais e mais formação. Mas nunca deixa de ter o instinto sobrenatural da fé (sensus fidei) «que o ajuda a discernir o que vem de Deus e o que realmente a Ele conduz (cf. Ex. ap. Evangelii gaudium, 119), também em âmbito litúrgico. Portanto, há que estar à escuta das comunidades e ter a humildade de aprender com elas.
A liturgia é um organismo vivo, como uma planta, e não uma peça de museu de pedra ou de bronze. Precisa, por isso, de ser cultivada com delicadeza e de ser celebrada com a alegria do Espírito, bem diversa da «alegria» de uma festa mundana. A liturgia, obra de Cristo e da Igreja, «é sempre gozosa porque canta o louvor ao Senhor». Consequentemente, convidam-se os cultores da ciência litúrgica a não dissociarem a dimensão académica da pastoral e espiritual. «Precisamos, hoje mais do que nunca, de uma visão alta da liturgia», capaz de «dirigir o olhar ao Senhor sem voltar as costas ao mundo». Neste ponto, como em Desiderio desideravi, o Papa repropõe a figura e o método mistagógico de Romano Guardini como modelo a seguir.
Francisco convida a cultivar a tradição que consiste em ir às fontes – a raiz – para crescer e não para recuar. E inventa mesmo um neologismo para caracterizar uma forma errada de invocar a tradição: «indietrismo». A palavra vem do italiano «indietro» (= atrás) e pode traduzir-se com um neologismo equivalente na nossa língua: «recuadismo» (de «recuar»). «O recuadismo é recuar dois passos porque é melhor o “sempre se fez assim”. É uma tentação na vida da Igreja que te leva a um restauracionismo mundano, mascarado de liturgia e teologia, mas é mundano… Na liturgia há tantos que se dizem “segundo a tradição”, mas não é assim: no máximo são tradicionalistas. Alguém dizia que a tradição é a fé viva dos mortos, o tradicionalismo é a fé morta de alguns vivos. … Estai atentos: hoje a tentação é o recuadismo mascarado de tradição».
O discurso termina recomendando que o estudo da liturgia seja impregnado de oração e de experiencia viva da Igreja que celebra. Como todas as disciplinas teológicas e com muito mais razão do que todas elas, a ciência litúrgica deve fazer-se «com a mente aberta e, ao mesmo tempo, “de joelhos”». De facto, o objeto do seu estudo é «o ato de celebrar a beleza e a grandeza do mistério de Deus que se nos dá».